As 'Selecções' de alguns de nós
"Para desconsolo de Ferreira Fernandes, que por estes dias escreveu sobre o tema, as Selecções do Reader's Digest apresentaram um pedido de insolvência. Eu também não fiquei animado, e por isso retorno à notícia fúnebre. A bem dizer, a empresa ainda não fechou. Mas até há quase um ano, quando a edição nacional me pediu um depoimento acerca das "presidenciais" americanas, andei imenso tempo convencido disso.
De facto, há muito que não ouvia falar nas Selecções, o petit nom pelo qual se tratava a publicação lá em casa. Sabem as amas-secas que nos marcam decisivamente a infância e depois desaparecem de vez? Eu não faço ideia. Não tive ama-seca. Tive pilhas de exemplares das Selecções, produzidos no Brasil e comprados pelo meu pai desde o fim da adolescência dele até ao início da minha. Contas por alto, do armário onde se arrumavam sem grande aprumo, um quarto do século XX me contemplava, condensado à semelhança dos artigos que definiam o estilo e o sucesso da revista.
Aos seis anos, estas coisas marcam como só me marcaram com igual vigor os livrinhos de Enid Blyton. Os Cinco mostravam o mundo sonhado de pequenas aventuras, trilhos pastoris, regatos e scones saídos do forno (o apetite pelos misteriosos scones apenas me passou no momento em que, já adulto, aterrei pela primeira vez em Londres e, ainda a caminho do hotel, entrei num café e provei tamanha porcaria). As Selecções descreviam o mundo dito real, repleto de guerras mais ou menos frias, calamidades, heróis quotidianos e desmesurados criminosos. Na sua visão simples, os heróis eram quase sempre americanos (ou "amigos") e os criminosos quase sempre comunistas (ou afins). Aos poucos, a maturidade provou-me que a simplicidade era razoavelmente acertada. Não fosse por mais nada (e foi), o anti-comunismo das Selecções, primário como qualquer reacção ao totalitarismo que se preze, constituiu para mim uma educação que, em 1975 ou 1976, a generalidade da imprensa nacional manifestamente não prestava.
Hoje, ignoro a orientação da revista, e suspeito que, na era da Internet, o género súmula informativa tenha perdido a função original. Mas se não devemos condenar o progresso, no caso acho excessivo festejá-lo. Excessivo e ingrato."
Alberto Gonçalves
De facto, há muito que não ouvia falar nas Selecções, o petit nom pelo qual se tratava a publicação lá em casa. Sabem as amas-secas que nos marcam decisivamente a infância e depois desaparecem de vez? Eu não faço ideia. Não tive ama-seca. Tive pilhas de exemplares das Selecções, produzidos no Brasil e comprados pelo meu pai desde o fim da adolescência dele até ao início da minha. Contas por alto, do armário onde se arrumavam sem grande aprumo, um quarto do século XX me contemplava, condensado à semelhança dos artigos que definiam o estilo e o sucesso da revista.
Aos seis anos, estas coisas marcam como só me marcaram com igual vigor os livrinhos de Enid Blyton. Os Cinco mostravam o mundo sonhado de pequenas aventuras, trilhos pastoris, regatos e scones saídos do forno (o apetite pelos misteriosos scones apenas me passou no momento em que, já adulto, aterrei pela primeira vez em Londres e, ainda a caminho do hotel, entrei num café e provei tamanha porcaria). As Selecções descreviam o mundo dito real, repleto de guerras mais ou menos frias, calamidades, heróis quotidianos e desmesurados criminosos. Na sua visão simples, os heróis eram quase sempre americanos (ou "amigos") e os criminosos quase sempre comunistas (ou afins). Aos poucos, a maturidade provou-me que a simplicidade era razoavelmente acertada. Não fosse por mais nada (e foi), o anti-comunismo das Selecções, primário como qualquer reacção ao totalitarismo que se preze, constituiu para mim uma educação que, em 1975 ou 1976, a generalidade da imprensa nacional manifestamente não prestava.
Hoje, ignoro a orientação da revista, e suspeito que, na era da Internet, o género súmula informativa tenha perdido a função original. Mas se não devemos condenar o progresso, no caso acho excessivo festejá-lo. Excessivo e ingrato."
Alberto Gonçalves
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