segunda-feira, outubro 12, 2009

Fado maior

"Foi no domingo passado que passei na casa onde vivia Amália Rodrigues. Mas está tudo tão mudado, pelo menos no essencial: ao contrário da tarde de 1998 em que pela primeira vez reparei naquela frontaria da Rua de S. Bento, Amália já lá não vive. Há 11 anos, ocorreu-me tocar a campainha e pedir para conhecer a proprietária. Tratou-se de uma ideia disparatada e felizmente fugaz. Não me imaginava em diálogo com Amália e, no fundo, custa-me imaginar que alguém tenha convivido com ela. Ainda hoje vejo com incredulidade os recorrentes depoimentos de familiares e amigos, os quais atestam a intimidade com alguém que, na minha cabeça, não partilhava o mundo com os restantes mortais.

Erro meu, admito. É verdade que os raros indígenas com prestígio internacional equivalente ao de Amália aspiram a tal distância. Ao menor indício de fama, sentem-se insuflar de uma importância que os projecta de imediato rumo a uma estratosfera privativa. Qualquer entrevista de Paula Rego ou António Lobo Antunes, por exemplo, é um inventário notável de tiques e afectações destinados a exibir a fronteira que separa os génios torturados da ralé. E Saramago, sobretudo desde o Nobel, presta diariamente a si mesmo homenagens solenes. Os portugueses comuns jamais quiseram ser portugueses ou comuns.

Com Amália, porém, acontecia o inverso. Nem menciono o talento, francamente incomparável. Lembro, apenas, o modo como era também luminosa no que dizia e na forma como o dizia. Cantasse ou não, parecia que o que quer que saísse da sua voz saía perfeito e simples e lúcido e essencial. As origens miseráveis, ou quaisquer origens, não explicam tamanha pureza. Em terra de fidalgos postiços, Amália foi uma aristocrata natural, que não era igual a nós e sempre teimou em existir entre nós. A sua absoluta excepcionalidade, que comove tantos, devia envergonhar alguns.
"

Alberto Gonçalves

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