quarta-feira, junho 30, 2010

Um balão-para eu brincar

"É meia-noite da noite de S. João e escrevo com dificuldade. Nas imediações de minha casa acontecem duas celebrações da data (duas!). De uma, pelos vistos mais modesta nos meios, sai um ruído abafado semelhante ao de uma morsa com cio. A outra projecta para um raio de cinco quilómetros a obra completa de Quim Barreiros, e juro que gostaria de conhecer o colega de profissão que já conseguiu amanhar umas dúzias de linhas enquanto ouvia fascinantes narrativas que envolvem o carro da vizinha e os peitos da cabritinha, ou vice-versa, não sei. Ainda por cima, a cada vinte minutos ambas as festas rebentam num foguetório que os meus cães levam a mal e a que respondem com alvoroço. Em suma, em meu redor implantou-se o inferno.

Estranhamente, não me apetece lamentá-lo. Estranhamente, apetece-me recordar o tempo remoto em que também eu participei dessa folia cuja única regra é a ausência de regras. Aniversários, casamentos, passagens de ano e carnavais cedem aos respectivos protocolos e, em última (ou primeira) instância, tornam-se insuportáveis. Não me lembro de o S. João maçar os que, à revelia de poderes tácitos ou oficiais, enchiam as ruas do Porto e se entregavam àquele caos gentil. Aos catorze, quinze, dezasseis anos, o caos serviu de pretexto para as primeiras saídas livres e intermináveis, ou, o que ia dar ao mesmo, terminadas ao sol da manhã seguinte, às vezes na praia. É uma memória feliz, se a palavra cabe aqui, mas uma memória.

Há muito que não frequento o S. João. Há muito que nem me ocorria a existência do S. João. No entanto, o S. João continuou sem mim, e as cantorias e os foguetes desta noite são uma espécie de demonstração prática de como será o mundo depois de eu já não estar nele. Suportar o barulho que entra pela janela é igual a ler o meu obituário. E não é tão desagradável quanto parece. Apenas não me deixa escrever. Excepto isto
."

Alberto Gonçalves

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