segunda-feira, dezembro 05, 2011

A Europa que dançou

"Os estudiosos dos fenómenos colectivos conhecem a capacidade de o ser humano adquirir, por contágio, comportamentos irracionais e inexplicáveis. Estão documentados os surtos dançarinos ocorridos entre os séculos XIV e XVII principalmente em cidades alemãs, nos quais um sujeito começava a dançar sem motivo aparente e, ainda antes de alguém virar o disco, dezenas ou centenas punham-se a imitá-lo. A coisa era menos uma expressão de alegria do que uma possessão incontrolável: o bailarico prolongava-se por horas e dias a fio, só interrompido pelo cansaço dos participantes, que desmaiavam ou cediam a um enfarte. Consta que alguns espumavam da boca.

Nenhuma epidemia do género, porém, ultrapassa a sucedida em boa parte da Europa nos primeiros anos do século corrente. De repente (digamos), diversos governos e populações desataram a espatifar o dinheiro que não possuíam e, a julgar pela capacidade produtiva dos respectivos países, jamais poderiam vir a possuir. Sobretudo a sul, o histérico exercício contaminou uma quantidade considerável dos membros da Zona Euro, que apenas moderaram a dança, perdão, a despesa perante ameaça ou constatação de falência. Também aqui houve problemas cardíacos, traduzidos quer nas contas públicas quer nas privadas. Também aqui houve quem espumasse, mas de indignação.

Misteriosamente, ou nem por isso, os indignados não se voltaram contra a sua própria folia. A raiva dirigiu-se inteirinha para os mercados e os especuladores, que deveriam continuar a confiar e a investir em irresponsáveis, para as agências de notação, que deveriam continuar a avalizar a irresponsabilidade, e para a sr.ª Merkel, que deveria continuar a hostilizar os contribuintes que a elegeram em nome de uma comovente "solidariedade". Em jargão contemporâneo, a "solidariedade" significa a alegada obrigação de uns em patrocinar o parasitismo dos restantes, inclinação natural com que, pelos vistos, a sr.ª Merkel não concorda.

A título de exemplo, veja-se o caso português. Segundo a peculiar ortodoxia, se um ou dois governos eleitos pelos cidadãos pulverizaram em meia dúzia de anos todos os recordes da dívida pública, a culpa coube aos estrangeiros que deixaram de financiar a proeza. Se, conforme reza um cliché adequado, esbanjámos acima das nossas possibilidades, a culpa é dos que não nos permitem prosseguir o esbanjamento. Se chegámos à bancarrota, a culpa é, enfim, dos que não tornam a bancarrota um estado viável e feliz. Num clímax humorístico, e à semelhança da criança que aponta o dedo ao colega, a ortodoxia justifica-se com o carácter internacional da crise, como se o facto de vários países terem enveredado pela demência absolvesse Portugal da dita.

A verdade é que, somados, os países em causa colocaram o euro na dependência de um milagre, ou na dependência da Europa que conta e faz contas. A solução que, muito hipoteticamente, hoje obstará ao fim da união monetária (e não só) é o critério que, num mundo sensato, teria presidido ao respectivo início: ou os calaceiros cumprem o rigor exigido ou são enxotados do convívio com a civilização. Por outras palavras, ou aceitamos a perda de soberania ou resignamo-nos a perder tudo. A ordem vem dos alemães, que agora curiosamente não dançam. Nós, e os gregos e os italianos e os espanhóis, dançámos. Até cair
."

ALBERTO GONÇALVES

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