E o vencedor é...
"Será talvez irónico que a televisão, responsável pelas maiores atrocidades na história do entretenimento desde a mulher barbuda (correcção: incluindo a mulher barbuda), seja hoje responsável por algumas das produções mais sofisticadas do género. Antigamente o refugo do audiovisual, a televisão desatou a exibir maravilhas como The Wire, Dexter, Arrested Development ou The Office. Em compensação, o cinema já raras vezes ultrapassa o primarismo assumido da banda desenhada ou, o que é pior, o primarismo da banda desenhada com pretensões "artísticas". Os melhores leading men da actualidade, de Hugh Laurie a Michael C. Hall, de Dominic West a Kelsey Grammer, recorrem à televisão para fazer carreira e ao cinema, onde se subjugam aos Pitt e aos Clooney desta vida, para fazer dinheiro. É inegavelmente irónico que o cinema nunca tenha facturado as fortunas actuais, e que a sua celebração anual nunca tenha sido tão épica e mentecapta.
Mesmo em épocas de fartura qualitativa, os Óscares jamais se distinguiram pelo esclarecimento (é escusado lembrar que Hawks, ou Cara Grant não ganharam um único). Em época de escassíssima qualidade, os Óscares distinguem-se pelo ridículo: na falta de filmes, não faltam fitas. Claro que nem sempre o ridículo e as fitas atingem os píncaros de 2003, em que a cerimónia foi reduzida a uma manifestação contra a guerra no Iraque. A imagem de Michael Moore a pedir a Bush que tivesse a vergonha que ele, um charlatão milionário, obviamente não possui simbolizou os abismos de hipocrisia a que a coisa desceu. Mas a coisa desce com regularidade. Não há cerimónia sem um par de vedetas a promover as "causas" a que aderiram na semana anterior (ou, no divertido caso de Sean Penn, vinte minutos antes), de resto a matéria da maioria das misérias a concurso.
No dia seguinte, os media aplaudem a coragem das vedetas. No léxico contemporâneo, "coragem" é o que leva uma pessoa a defender ou criticar o que é defendido ou criticado por quase toda a gente. É lícito louvar o ambiente, o "pacifismo" e "Che" Guevara, ou caricaturar o evangelismo cristão, Margaret Thatcher e o senador McCarthy, um monstro que, embora morto há meio século, as valentes celebridades não cessam de combater. Na verdade, as celebridades só não combatem inimigos reais e realmente perigosos. Os limites do seu activismo definem-se pelas maçadas que o activismo lhes poderá trazer. Grosso modo, os limites são o Islão.
Parece que Sacha Baron-Cohen, criador de Borat, sentiu agora as interdições da famosa "academia", cujo convite para os Óscares estaria dependente da garantia de que o actor inglês não aproveitará o evento a fim de promover O Ditador, paródia de um deposto líder de um país muçulmano. Suspeito que a palavra-chave, aqui, é "muçulmano": com o Profeta e respectivos seguidores não se brinca. À hora em que escrevo, consta que a "academia" deseja afinal integrar a personagem de Baron-Cohen no alinhamento da noite, uma tentativa de controlar danos à qual Baron-Cohen cederá ou não. Inclusive, corre por aí que tudo se resumirá a um truque publicitário combinado por ambas as partes. Pouco importa. O importante é a mera plausibilidade da cautela, uma extravagância num mundo orgulhoso de desafiar interditos excepto o interdito que mata.
Recentemente, transtornados locais promoveram pequenas chacinas a propósito da queima de exemplares do Corão numa base militar americana no Afeganistão. Em geral, as chacinas ou as ameaças não carecem de pretextos tão ofensivos (e dispensáveis). Uma palavra, um rabisco ou uma rábula cómica bastam para suscitar a fúria de quem, na última década, decide o que é admissível no nosso comportamento. Por isso o nosso comportamento se resigna ao medo, uma irrelevância quando restrito ao grotesco circo de Hollywood, um perigo quando alargado ao Ocidente. Logo veremos se o medo voltou a vencer. Ou verão os que seguem pelo televisor a homenagem a este cinema e, até certo ponto, a este Ocidente resignado. A TVI passa os Óscares. Enquanto não vir uma vedeta enxovalhar o fanatismo que conta ou um bom filme premiado, eu também passo."
Alberto Gonçalves
Mesmo em épocas de fartura qualitativa, os Óscares jamais se distinguiram pelo esclarecimento (é escusado lembrar que Hawks, ou Cara Grant não ganharam um único). Em época de escassíssima qualidade, os Óscares distinguem-se pelo ridículo: na falta de filmes, não faltam fitas. Claro que nem sempre o ridículo e as fitas atingem os píncaros de 2003, em que a cerimónia foi reduzida a uma manifestação contra a guerra no Iraque. A imagem de Michael Moore a pedir a Bush que tivesse a vergonha que ele, um charlatão milionário, obviamente não possui simbolizou os abismos de hipocrisia a que a coisa desceu. Mas a coisa desce com regularidade. Não há cerimónia sem um par de vedetas a promover as "causas" a que aderiram na semana anterior (ou, no divertido caso de Sean Penn, vinte minutos antes), de resto a matéria da maioria das misérias a concurso.
No dia seguinte, os media aplaudem a coragem das vedetas. No léxico contemporâneo, "coragem" é o que leva uma pessoa a defender ou criticar o que é defendido ou criticado por quase toda a gente. É lícito louvar o ambiente, o "pacifismo" e "Che" Guevara, ou caricaturar o evangelismo cristão, Margaret Thatcher e o senador McCarthy, um monstro que, embora morto há meio século, as valentes celebridades não cessam de combater. Na verdade, as celebridades só não combatem inimigos reais e realmente perigosos. Os limites do seu activismo definem-se pelas maçadas que o activismo lhes poderá trazer. Grosso modo, os limites são o Islão.
Parece que Sacha Baron-Cohen, criador de Borat, sentiu agora as interdições da famosa "academia", cujo convite para os Óscares estaria dependente da garantia de que o actor inglês não aproveitará o evento a fim de promover O Ditador, paródia de um deposto líder de um país muçulmano. Suspeito que a palavra-chave, aqui, é "muçulmano": com o Profeta e respectivos seguidores não se brinca. À hora em que escrevo, consta que a "academia" deseja afinal integrar a personagem de Baron-Cohen no alinhamento da noite, uma tentativa de controlar danos à qual Baron-Cohen cederá ou não. Inclusive, corre por aí que tudo se resumirá a um truque publicitário combinado por ambas as partes. Pouco importa. O importante é a mera plausibilidade da cautela, uma extravagância num mundo orgulhoso de desafiar interditos excepto o interdito que mata.
Recentemente, transtornados locais promoveram pequenas chacinas a propósito da queima de exemplares do Corão numa base militar americana no Afeganistão. Em geral, as chacinas ou as ameaças não carecem de pretextos tão ofensivos (e dispensáveis). Uma palavra, um rabisco ou uma rábula cómica bastam para suscitar a fúria de quem, na última década, decide o que é admissível no nosso comportamento. Por isso o nosso comportamento se resigna ao medo, uma irrelevância quando restrito ao grotesco circo de Hollywood, um perigo quando alargado ao Ocidente. Logo veremos se o medo voltou a vencer. Ou verão os que seguem pelo televisor a homenagem a este cinema e, até certo ponto, a este Ocidente resignado. A TVI passa os Óscares. Enquanto não vir uma vedeta enxovalhar o fanatismo que conta ou um bom filme premiado, eu também passo."
Alberto Gonçalves
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