domingo, fevereiro 12, 2012

Os piegas

"Em tempo de privações, os países civilizados discutem o que se deve fazer. Nós discutimos o que se deve dizer. Nessa linha, não surpreendeu que o tema da semana fosse o apelo do primeiro-ministro para que fôssemos, passo a citar, "menos piegas". É certo que a frase parece uma adaptação pelintra do "sangue, suor e lágrimas" celebrizado por Churchill, revista à escala da crise e do emissor. Mas também é verdade que muitos dos destinatários não merecem maior sofisticação. Não consta que os ingleses de 1940 se sentissem ofendidos por um governante lhes oferecer secreções corporais. Porém, inúmeros portugueses de 2012 tomaram a peito o desabafo do dr. Passos Coelho. O Bloco acusou-o de insultar o povo. O PS acusou-o de flagelar o povo. E, naturalmente, o PCP prometeu resposta do povo em manifestação próxima.

Entretidas com a blasfémia, nenhuma destas forças ultrajadas criticou, por exemplo, o processo de reforma da administração local. E se o fizeram, as críticas deveram-se a reflexos con- dicionados e não a argumentos reais. Ou a uma simples evidência: a reforma em causa, justamente chamada de "reorganização" e limitada à supressão de uns 30% das freguesias, é um engodo e, se nos der para rir de coisas tristes, uma anedota. O acordo com a troika previa a extinção de uma percentagem substancial e sensata de municípios. Aflito, o Governo depressa tomou as providências necessárias para que não se extinguisse um único e para que o propósito descesse àquele limbo onde em Portugal falecem todos os arremedos reformistas. De repente, analisa-se (digamos) uma brincadeira periférica, leia-se a quantidade de freguesias, como se o problema a sério, leia-se a quantidade de municípios, nunca tivesse sido sequer colocado. O Governo mostra-se inflexível, o lóbi dos autarcas finge-se escandalizado e tudo termina no exacto ponto em que começou. Ou quase, o que é o mesmo e é igual.

É óbvio que os autarcas constituem uma parte essencial das clientelas partidárias, por definição intocáveis. Pior ainda, é notório que o amparo das clientelas, excelentemente representadas no executivo pelo dr. Relvas, não se esgota nas câmaras municipais. O país está repleto de degenerescências do género, uma interminável rede de empregos estatais na letra ou no orçamento que, no fundo, são a unidade monetária em vigor na política.

Só um milagre ou a distracção do dr. Relvas permitiriam que o Governo beliscasse de facto tamanha fortuna. Milagres não existem e o dr. Relvas não se distrai. Salvo alterações cosméticas, é garantido que nada ficará diferente do que era antes, e que os prometidos "cortes" nas gorduras do Estado significam, afinal, o ritual emagrecimento dos contribuintes. O Governo "neoliberal" da lenda prescreve a solução do costume e, em vez de reduzir despesa, extrai, crescentemente à imagem de um tumor, receita. E os que se queixam mais alto, queixam-se do que não interessa, aliás a própria definição de pieguice.
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Alberto Gonçalves

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