Barbárie 2.
"A história não ensina nada apenas castiga pelo desconhecimento das suas lições"
Vassili Kliutchevski -escritor russo sec XIX
Vassili Kliutchevski -escritor russo sec XIX
cit. PÚBLICO 5-9-2004
É bom que todos nós tenhamos claro um facto: os terroristas que exigiram a abolição da lei proibindo o uso do véu islâmico nas escolas públicas francesas, a troco da libertação dos dois jornalistas reféns, apenas se limitaram a essa exigência porque perceberam ser ainda cedo para passarem à segunda fase da sua luta.
Se já estivessem aí (e podem estar mais perto do que se imagina!) a exigência seria outra: a da imediata criação em França de uma lei que tornasse obrigatório para todas as francesas o uso do véu islâmico. A pior ameaça da civilização ocidental para este bando de fanáticos radicais somos nós e a nossa liberdade. A de todas as mulheres, sejam elas cristãs, judias, agnósticas, ou animistas. Sem excluir as suas próprias mães, as suas próprias filhas e as suas próprias mulheres, muçulmanas, cobertas e submissas. Dispostas a imolarem-se para vingar as mortes dos respectivos "homens", num exército sem fim... de "viúvas negras" prontas para o martírio.
É a nossa ordem que não estão dispostos a aceitar ou, dito de outra forma, é da sua velha ordem que não abdicam. E não nos enganemos com ilusões de partilha de valores "universais". Os nossos valores são infelizmente e apenas "ocidentais", seja lá o que for que isso signifique exactamente, com toda a carga de cristianismo que isso acarreta (embora os laicistas de serviço gostem de a varrer para debaixo do tapete). Talvez afinal Huntington tivesse mais razão do que erros na sua tese radical. O choque de civilizações pode estar debaixo dos nossos olhos sem que o queiramos ver e reconhecer.
Talvez por não querermos admitir a nossa responsabilidade no germinar do medo que degenera em terror. Primeiro, por não querer ver e actuar sobre situações de extrema iniquidade, socialmente degradantes, que acabaram por perpetuar no poder líderes corruptos, déspotas e sanguinários. Como não haveriam de fermentar entre os seus povos subjugados doutrinas radicais? Os 70 por cento de população activa desempregada no Cáucaso só podem constituir um viveiro para os terroristas. Segundo, por não termos sabido ou querido, combater o terrorismo.
Escudados numa pseudo liberdade de opinião, preferimos a política da avestruz que só favoreceu a expansão dos radicalismos de toda a espécie. Depois, investir nos serviços secretos, na polícia e nas Forças Armadas não só não dá votos como pode até fazer perder alguns. Percebe-se a importância de investir no treino das Forças Armadas e de Forças Especiais se elas forem um fiasco a resgatar os nossos filhos. Até lá, passamos bem sem ele. Isso pode até render a poupança de alguns milhões!
No nosso mundo há milhares e milhares de muçulmanos, e muçulmanos com quem partilhamos os prédios, as escolas, os hospitais, os espaços de oração. Gente aberta, cordial, culta, e dialogante. Penso nos amigos turcos que deixei em Bruxelas. Muçulmanos que são também para os terroristas apenas alvos como todos nós. A maturidade da sua fé, o seu respeito pelas outras religiões, a adesão a valores como o da igualdade plena entre homens e mulheres são, em si mesmas, vistos como uma traição a esse Islão fanatizado, idealizado por estas hordas de bandidos armados até aos dentes e prontos a fazerem-se explodir a qualquer momento acompanhados de centenas de "infiéis".
Desconhecem a esperança e a misericórdia. Só conhecem o ódio. São em si mesmos os piores inimigos do seu próprio povo. Lançam-nos o desafio de não nos deixarmos contaminar pelo seu ódio porque este se alimenta de si próprio. O de resistirmos ao simplismo dos que pensam como Khachik Danilov, um ossétio que, no desespero do sequestro da escola de Beslan, dizia ao jornalista: "Porque é que os metem na prisão, os alimentam, lhes dão cama? Matem-nos a todos!". O de não pactuarmos com o horror indiscritível de um linchamento ainda que ele seja do pior dos terroristas.
Temos de resistir a essa aculturação ao terror bárbaro, em nome de nós próprios e da nossa civilização. Como não se cansa de recordar João Paulo II (que viveu na pele o terror do holocausto e da ditadura comunista), temos de perceber que "não há Paz sem Justiça nem Justiça sem Perdão!". "Só o perdão pode extinguir a sede de vingança e abrir o coração a uma reconciliação autêntica". No caso da Ossétia os terroristas deixaram a pior das sementes: o despertar do vírus do conflito étnico entre muçulmanos inguches e tchetchenos e cristãos ossétios. Os líderes religiosos muçulmanos franceses foram bem claros ao identificar o risco: a execução dos dois jornalistas tornaria toda a comunidade muçulmana em França refém desse ódio. Vide o que se passou no Nepal, à execução no Iraque de doze dos seus concidadãos seguiu-se o assalto, por budistas, a uma mesquita.
Os actos de terrorismo a que assistimos esta semana deixam também claro um segundo facto: ninguém está ao abrigo destes criminosos. No Iraque, no Afeganistão, na Ossétia ou em Lisboa. Essa é a marca de água deste novo terror. Não nos iludamos, contudo, ao confundir estes novos bárbaros com um novo tipo de terroristas definitivamente maus. Não há, nunca houve (e não o ter compreendido a tempo foi talvez o nosso pior erro!!!) terroristas bons, nem terroristas mais ou menos ou menos maus. Nenhuma causa desculpa o terror.
E para os que pensam que este cenário é exclusivo do pós-11 de Setembro não resisto a transcrever aqui o texto da minha crónica enviada de Bruxelas e publicada no Público na manhã desse mesmo dia. Chamava-se a crónica "o risco da Barbárie" e começava assim: "Quinta-feira foi o primeiro dia de primária de um dos meus rapazes. Como milhares de outras mães, levei-o pela mão, submerso na enorme mochila (...) os dois partilhávamos a alegria de crescer e o medo do futuro. Eu sentia um nozinho a apertar-me a garganta. Em plena escola Europeia (...) assaltou-me a angústia sobre o Estado desta Europa e deste mundo que lhes deixamos. Não conseguia deixar de pensar que Belfast fica a mil quilómetros daqui, ou seja, a metade da distância que me separa de Lisboa. Na véspera vira na televisão as noticias do atentado extremista dos lealistas protestantes contra uma coluna policial que escoltava um grupo de miúdas (...) a caminho da escola de Holy Cross", protegendo-a da fúria de insultos da vizinhança do bairro.
O texto continuava recordando o relato de uma mãe que não ousou voltar-se quando ouviu o estrondo da explosão porque temia "deparar com o espectáculo dos pais e crianças que vinham atrás de si todos mortos". Não foi na Ossétia a primeira vez que terroristas tomaram crianças por alvo no seu primeiro dia de escola. O método não é sequer exclusivo do extremismo muçulmano e, naquele caso concreto, foi usado pelo lealismo protestante. Podia ter sido pelo independentismo católico do IRA. Seria igualmente mau.
Já a terminar escrevi então, "parece que estamos adormecidos, de olhos vendados, a sonhar que os tempos não voltam para trás, e deixamos que lenta e paulatinamente as coisas retrocedam (para a tal barbárie a que se referia o título).
Nessa tarde acordámos para o estado do nosso mundo. Começava a era pós-11 de Setembro. Estava grávida e quando vi o choque do segundo avião não consegui deixar de pensar: Meu Deus, que mundo será o deste bebé? Na próxima semana ele irá pela primeira vez para o infantário. Ao levá-lo para o seu primeiro dia de escola perseguir-me-á a imagem daquela mãe em lágrimas a fugir com o seu bebé nu ao colo. Com um filho morto nos braços seremos nós capazes de continuar a desejar que os assassinos sejam simplesmente presos? Se não formos... acabaremos cobertas com um véu ou uma burka. Eles ganhar-nos-ão a guerra! Mas quantas de nós seremos capazes de resistir a clamar vingança? E por quanto tempo? "
GRAÇA FRANCO
1 Comments:
E conta com o apoio da esquerda trauliteira.
Zeca Lobo
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