sábado, março 19, 2005

As crianças e o Banco Mundial

Há três partes que é necessário distinguir no Banco Mundial: a académica; a retórica; a política. Ou seja: há o que se pensa, o que se diz, e o que se faz. Diz-nos o senso comum que nem sempre o que pensamos dizemos, nem sempre o que dizemos fazemos, nem sempre o que fazemos pensamos. Não há razões para pensar que o Banco Mundial é diferente. No entanto, há duas razões fundamentais pelas quais eu acredito que a nomeação de Paul Wolfowitz provará ser um desastre para as perspectivas de futuro de milhões de pessoas.

A primeira é histórica. O Banco Mundial atravessou todos as crises de má disposição da segunda metade do século XX. Os anos 60 foram porventura os mais proveitosos na parte académica: pensava-se muito sobre o desenvolvimento, Lucas disse a frase que me fez escolher a carreira que escolhi: "quando olhamos para estas questões - de desenvolvimento - percebemos como tudo o resto é demasiado pequeno", nasceram modelos e foi a época dourada da Economia do Desenvolvimento. Depois vieram os anos 70, e as crises financeiras fizeram perceber que os problemas não estavam só no quintal dos países ricos, mas nas suas próprias fundações: o FMI cresceu em importância e o Banco Mundial esperou até aos anos 80 para casar - expressão popular dos historiadores económicos nesta metéria - com o FMI. O último percebeu que os modelos que usavam tinham um equilíbrio, e que esse equilíbrio, por definição, não criava flutuações dinâmicas que permitissem crescimento: é uma fotografia, alguém tinha que fazer o filme. O Banco Mundial, o FMI e os Estados Unidos chegaram ao que ficou conhecido com o Washington Consensus - as três organizações têm sede lá. O mundo vivia sob Ronald Reagen e Thatcher, e não é de surpreender que Anne Krueger chefiasse a parte escolástica do Banco Mundial.

Por pior economista que seja (e é), Anne Krueger tinha ideias claras sobre o desenvolvimento: a retórica alterou a escolástica, e a escolástica teve um papel preponderante na prática. Não havia medo, não era preciso pensar o que se dizia porque podia-se dizer o que se pensava: os países pobres têm governos corruptos, o que é preciso é ocidentalizarem-se, constituirem democracias, controlarem os seus orçamentos e o seus défices externos, pararem de intervir na Economia, etc. Os resultados foram ainda mais catastróficos que os do Monetarismo nos países ricos, mas as classes médias destes estavam demasiado preocupadas porque sofriam na pele. Quando passou o analgésico da dor, percebeu-se que a receita não servia os países ricos, quanto mais aqueles que ainda tinham que crescer. Havia algo de errado no que se pensava. O que fazer? Contratar um pensador. Joseph Stiglitz foi nomeado economista-chefe do Banco Mundial. Stiglitz foi e é um economista reputado nos EUA, e percebeu que se o modelo neoclássico - o que a Economia moderna toma como um dado e se ensina a jovens de 18 que, de outra forma, seriam saudáveis e com períodos regulares - nem sequer passava o teste do quadro da escola, muito menos se poderia aplicar a uma Economia de gente a sério.

Não o fez por criticar a metodologia - o individualismo - nem o raciocínio - dedutivo, mas sim por pôr em causa algumas das hipóteses sagradas da Economia: aceitou que todos nós somos infinita e absolutamente racionais, mas que não sabemos tudo o que se passa à nossa volta. Se assim for, e se pensar der mesmo trabalho, então o mais lógico é não sermos totalmente lógicos - é racional não se ser totalmente racional. Nunca o Banco Mundial produziu tantos artigos científicos, todos baseados na assimetria de informação e na selecção adversa - os nomes pomposos para a nova teoria de Stiglitz - e tudo, mas tudo, se podia explicar pela quebra das hipóteses da informação perfeita e dos mercados completos: o socialismo, o atraso agrícola em África, os casamentos e a religião. Podia-se dizer tudo o que se pensava, mas por alguma razão estranha não dava para fazer nada do que se dizia: quando Stiglitz começou a pensar porque é que isso seria assim, e algumas equipas de economistas eram mandadas para os países pobres e pela primeira vez ficavam mais que dois dias e em hotéis sem ser de cinco estrelas com captação da cnn, foi despedido. Era tarde demais para continuar a fazer as pessoas pensar que o monetarismo, o mesmo que tinha arruinado a Economia os países ricos, era a doutrina dominante para os países pobres. Fazia-se monetarismo mas não se dizia nada: nem se pensava muito.

O melhor exemplo disto aconteceu em 2001, quando o World Development Report - a publicação mais famosa do Banco, onde são publicados anualmente os lugares no Índice do Desenvolvimento Humano - pela primeira vez assumiu que se calhar nem era muito boa ideia focar toda a atenção no rendimento per capita, e se calhar aprender a ler e ter saúde também podem ser importantes. Foi totalmente ignorado, mas como ninguém ligava muito nem se deram ao trabalho de disfarçar com retórica: no ano seguinte já não havia cá saúde nem educação, as medidas continuavam a incluir a desvalorização cambial, a repressão dos sindicatos e Estados mais fracos: precisamente o que tinha destruído a Economia dos países ricos. Em resumo: a escolástica cresceu, parou, cresceu noutro sentido e estagnou; a retórica foi quase sempre a mesma, e quando mudou mandou-se embora o homem; a prática foi sempre a mesma. Exemplo? Neste tempo todo não falei dos presidentes, mas dos economistas-chefes. Mas se a prática é sempre a mesma, porque é que me preocupo que o homem que arquitectou a invasão do Iraque e ajudou a relançar o realismo político (defendeu um dia que a América tinha que tirar da Guerra Fria a capacidade de mentir e mostrar que quem é contra eles deve arrepender-se profundamente) tenha sido nomeado presidente do Banco? Afinal, não é até melhor que se mostre de uma vez por todas a vontade que os americanos têm de desenvolver o mundo? Não. Porque por mais asneiras que uma criança diga, não lhe vamos convencer que epá, pronto, desde que penses que estás errada tudo bem, não te tentamos educar!

A segunda razão é que o homem é um asno.

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