quarta-feira, dezembro 09, 2009

8 de Dezembro de 1980.

À porta do edifício Dakota, aonde morava em Nova York, John Lennon foi baleado 5 vezes por um fã, Mark David Chapman, a quem havia dado um autógrafo à tarde. Mesmo tendo sido socorrido por um carro de polícia, morreu quando chegou ao Hospital Roosevelt.

"A 9 de outubro de 1940, enquanto a força aérea alemã bombardeava o estratégico porto de Liverpool - na Inglaterra -, nascia John Winston Lennon, filho de Julia Stanley e de Alfred Lennon - camareiro de barco e empregado em uma das tantas empresas de navegação do porto. Em 9 de outubro de 1980, John Lennon completou quarenta anos. Dois meses mais tarde, um imbecil chamado Mark David Chapman, descarregou cinco disparos mortais sobre seu corpo.

O que aconteceu entre os bombardeios nazis ao porto de Liverpool e os cinco disparos em frente ao edifício Dakota em Nova York, já faz parte da história da cultura do século XX. Lennon é - sem dúvida alguma - uma lenda, um mito, uma referência obrigatória, um ícone, um produto publicitário, uma imagem carregada de inumeráveis referências. Lennon foi - além de todas as opiniões importantes - um protagonista. Um protagonista que construiu a si próprio a partir de um duplo abandono: pai ausente - com a justificativa que recaía em sua profissão de marinheiro - e mãe desnaturada que, diante da recusa de seu novo companheiro - um tal Robert Dickins - de carregar o menino John, este acaba na casa de sua tia Mimi Smith - irmã de Julia -, que lhe proporciona o amor que a mãe não quis dar. Não é necessário abrir uma profunda hermenêutica psicanalítica para entender que este duplo abandono é substancial na personalidade e desenvolvimento artístico de Lennon. O cinismo, o machismo, a insegurança que marcará toda sua vida, as intermitentes depressões reunidas a uma hipertrofiada idéia de genialidade, a paranóia, as flutuações entre a dependência extrema de drogas - anfetaminas, LSD, heroína, ópio, maconha - e as igualmente intempestivas imersões na espiritualidade oriental, nas curas naturistas, na acupuntura, na terapia primal, no pacifismo, no compromisso social, desenham o molde de uma figura plural, contraditória, em permanente conflito consigo mesmo.

É indubitável que os Beatles não seriam possíveis sem Lennon, mas - pelo contrário - é pouco provável que Lennon não existiria sem os Beatles. Arrisco a hipótese de que o grupo pop que mudou o rumo da música nos anos 60 foi uma feliz conjunção graças ao poder imantatório de John Lennon: sem este, sem suas neuroses, sem sua egolatria construída sobre seus sentimentos de inferioridade, sem sua baixa auto-estima, em suma, sem sua constante dor, o fenômeno e o mito da beatlemania jamais haveria existido. "Quando tinha doze anos costumava pensar: eu devo ser um gênio, mas ninguém se dá conta" - declarou em 1970. "Não posso estar louco, porque não me prendem; portanto, sou um gênio. Quer dizer, ser um gênio é uma forma de loucura e isso é tudo. Eu costumava ser um pouco tímido acerca de aspectos como minha forma de ser ou de tocar guitarra. Se existe isso de gênio, mesmo que eu não saiba que merda é essa, eu o sou, e se não, dá no mesmo. Não mudei porque os Beatles triunfaram e se me conhecessem veriam que tenho sido igual sempre. O gênio também é dor. Só dor." Lennon foi sincero com suas contradições. Não soube mentir. Sua música, sua poesia, também flutuaram entre o niilismo e o desespero de Cold Turkey e a fraternidade cândida de Imagine.

A aparição de Yoko Ono na vida de Lennon significou a restituição da mãe, o pacto com seu lado feminino, o paulatino abandono de suas máscaras, de sua soberba, de seu machismo irredimível. Culpa-se a Ono de ter sido a causadora da separação dos Beatles e, em parte, aqueles que pensam assim têm razão. Ono controla Lennon, se ocupa dele e o ocupa; é uma invasora e uma protetora. Assim o salva. O salva de si mesmo, de seu delírio de líder, de pobre diabo convertido em Jesus Cristo. "Sou mais eu mesmo agora do que antes porque tenho a proteção de Yoko - disse o ex-Beatle -; é o que me provocou a mudança, é como ter uma mãe. Estou seguro em minha relação com ela e isso me permite relaxar. Antes nunca estava relaxado, sempre estava alerta, nervoso. Sempre estava na defensiva e por isso aparecia o Lennon cínico, os comentários sarcásticos e tudo isso. Já não sou assim, porque já não tenho nada a esconder." Lennon se afemina - no melhor sentido do termo. Quando nasce seu segundo filho, Sean, Lennon se fecha em seu apartamento do edifício Dakota, entregue ao cuidado do pequeno, e aprende a fazer pão, a cozinhar para Yoko, o bebê e alguns poucos convidados; já não compõe, ao menos por um ano e meio desaparece do mundo do espetáculo.

Essa transformação pessoal também se dá reunida a uma participação cada vez mais ativa no âmbito social. A guerra do Vietnã permeou a sensibilidade da juventude e tornou intolerável qualquer atitude indiferente ou neutra a respeito. O binômio Lennon-Ono se manifesta, se desnuda, corta o cabelo, ingere LSD, se acama uma semana e chama a imprensa, diz: "Dê uma chance à paz" ou "A guerra acabou, se você assim deseja". Lennon enfrentou o governo Nixon, o FBI e a rainha Elizabeth como um adolescente que deixa crescer as costeletas para irritar seus pais. E conseguiu. Irritou aos poderosos, aos politicamente corretos, aos moralmente intocáveis. Não estava só: a geração dos anos 60 - e o rabicho final dos 70 - estava propensa à irreverência, ao questionamento sistemático do poder do Pai.

Beatniks primeiro, hippies depois, panteras negras, roqueiros andarilhos, vagabundos do dharma, pacifistas, revolucionários marcusianos, ativistas do amor livre, gurus californianos, antipsiquiatras londrinos, espíritas de novo cunho, filósofos zen, yogues do Central Park, astrólogos do haxixe e do lisérgico, novos maoístas com pais empresários, feministas defensoras do orgasmo clitoriano, homossexuais ativos, happenings, efêmeras e utópicas comunidades, sensualidade socializada, hiperestesia, o desejo solto abrindo sulcos nas ruas dos Estados Unidos e das grandes cidades do mundo. Lennon potencializou esse estado de coisas; foi, talvez, uma das cabeças mais visíveis deste organismo multicéfalo que percorreu o mundo antes que o sonho acabasse. E o sonho acabou. A adolescência é finita e seu poder mensurável. Lennon foi assassinado aos quarenta anos em 1980. Sua vida foi uma contradição protagônica. Aí reside sua grandeza; não em ter sido o líder e o mais criativo dos Beatles (foi, tecnicamente falando, um músico medíocre), mas sim na construção de sua heróica resistência contra si mesmo, fazendo de sua debilidade fortaleza na criação.

A época, o século, precisava de Lennon. Nascido sob o império da violência, sob o mesmo desígnio deixou de existir. "Todos somos Jesus Cristo e todos somos Hitler", dizia John em algum momento de sábia lucidez. Também, acrescentemos agora, todos somos John Lennon; todos somos filhos deste filho abandonado que soube ser o contraditório protagonista de uma época. "

Víctor Sosa

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