sexta-feira, fevereiro 02, 2007

Questão de inconsciência

"Ao invés do que parece ser a tendência em voga, os meus princípios valem pouco. Prometi-me não voltar a escrever sobre o aborto. Prometi-me não voltar a ver o ‘Prós e Contras’. Anteontem, vi o ‘Prós e Contras’. Era sobre o aborto. Esta crónica também. Que querem? Não resisti. Não se resiste ao espectáculo da fúria cega em directo televisivo, nem a Vital Moreira, com o enfado coimbrão dos falecidos, a rogar aos incautos: “Haja coerência, senhores!”

Note-se que, no dito programa, estavam os maiores especialistas no assunto que a RTP conseguiu arregimentar. Ainda bem. É muito difícil um cidadão votar no referendo, ou tomar uma decisão profissional, ou escolher a cor dos sapatos, sem antes ouvir os conselhos abalizados de Fernanda Câncio ou de Katia Guerreiro. E, como se não chegasse, havia também actores, médicos, treinadores, apresentadores de variedades, colunistas, políticos e mulheres, imensas mulheres traumatizadas, ofendidas e chocadas com a selvajaria a que os seus opositores na batalha as desejam, por gratuita crueldade, sujeitar.

Numa avançadíssima exibição de democracia participada, todos os especialistas em causa possuíam opiniões. Para nossa desgraça, emitiam-nas. Isto é, basicamente diziam o que lhes vinha à cabeça, misturando a moral com o direito, a crença com a ética, a cisma com a medicina, a ciência com a fezada. Quando se trata do aborto, tudo vale, já que o tema não pede, nem sequer concede, uma sombra de racionalidade. Como ninguém ‘sabe’ nada acerca da matéria, e como, na ausência de consensos lógicos ou científicos, a matéria não tem nada o que ‘saber’, a coisa presta-se aos mais contraditórios delírios e às mais ardentes paixões. Principalmente, habilita qualquer um a berrar as suas ‘convicções’ como se delas dependesse o futuro da Humanidade.

E por que berra e se esforça e se esfola esta gente? Pelo menos em parte, insisto: porque é fácil e inconsequente. A discussão do aborto tornou-se uma alternativa popular às conversas de futebol no café, em que dois ociosos gastam horas sem decidir se foi ou não foi penálti. Aliás, na excitação oca que provoca, a campanha para o referendo não é demasiado diferente das heróicas campanhas da selecção nacional: um frenesim histérico e insuportável, a que não se deve ficar alheio sob pena, no caso, de ‘insensibilidade social’.

Contra o empenho exigido por tantos fiéis inflamados (por azar, não literalmente), é quase perigoso lembrar que o motivo de semelhante pandemónio não é um concurso de amor à vida ou um desfile da dignidade feminina: o que vai ser referendado no dia 11 é uma pergunta, e uma pergunta tão estupidamente formulada que, reconheça-se, a campanha para lhe inventar uma resposta teria talvez de cair na miséria em curso. Resta que responder à estupidez é legitimá-la.

Em lugar de gritarias a pretexto de adoráveis fetos e da imaginária prisão das senhoras que os ‘interrompem’, seria útil debater uma pena real, e pesada, para quem aborta o sossego dos outros com disparates. Aí, eu votaria. No ‘sim’, claro
."

Alberto Gonçalves

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Meu caro senhor, evoluir é deixar que a agua flua livremente até ao seu (destino)? contornando obstaculos, limpida e turva, forte e fraca mas livre de seguir o seu destino, deixando por vezes, aluvioes de desgracas, mas tambem desinfeccao e limpeza que infelizmente so'se revelam demasiado tempo depois. Moral e etica, nao se impõe, aceita-se ou não.

sexta-feira, fevereiro 02, 2007  

Enviar um comentário

<< Home

Divulgue o seu blog!