‘Spin’
"A “consultadoria” em comunicação política tornou-se fundamental quando os media ganharam uma centralidade no processo político.
Num interessante livro, “Spin” (Venezia, Marsilio, 2007), Giancarlo Bosetti, director da excelente revista italiana “Reset”, faz uma sugestiva proposta sobre as relações entre cultura, intelectuais e política. Que reza mais ou menos assim: se é verdade que, para Karl Marx, a religião era o “ópio do povo”, funcionando como um alucinogéneo que mantinha os povos em submissa dependência dos poderes estabelecidos, para Raymond Aron, o autor de “O ópio dos intelectuais”, é o próprio marxismo que se torna “ópio dos intelectuais”, uma vez que a revolução e a utopia funcionam como válvulas de escape das misérias de um mundo a que não se adaptam, porque injusto, imperfeito e incoerente. Esta tese faz-me lembrar o livro de Wolf Lepenies sobre a ascensão e queda dos intelectuais. E aquela alternância entre melancolia e revolução que tantas vezes dilacera o coração e a mente do intelectual. Porque quando não se projecta activamente na revolução, ele entra inevitavelmente numa melancolia depressiva, sofrendo pelo estado deplorável do mundo.
Acontece que, em ambos os casos, se está perante o reconhecimento da força material das ideias, capazes de moldar e determinar o real e os comportamentos humanos. A concepção de cultura que subjaz a ambas as posições, de Marx e de Aron, aponta para o reconhecimento da existência de uma dimensão verdadeiramente ontológica, substancial e não puramente instrumental das formas culturais, sejam elas religiosas ou filosóficas. Mesmo no caso de Marx (que não da ortodoxia), não é aceitável a ideia de que, para ele, a religião seja igual a pura mentira, a ilusão programada, instrumental. Identificando religião com ideologia, Marx refere-se sobretudo ao modelo de representação do real, como uma “camera obscura”, onde o real surge invertido e as causas surgem como consequências, numa clara oposição ao modo de apreensão do real pela ciência. É, no meu entendimento, no interior da dicotomia ideologia/ciência que deve ser entendida a natureza da ideologia.
Ora, Giancarlo Bosetti propõe-nos uma terceira fase nas relações entre intelectuais, cultura e política: a fase ‘spin’. Ou seja: o ‘spinning’ como “ópio do século XXI”. Trata-se de uma “tecnologia invasiva”, ou política com “efeito”. O discurso político é aqui emitido com efeitos de distorção capazes de induzir no receptor leituras e comportamentos vantajosos para o emissor. Trata-se, agora, de uma comunicação meramente instrumental, sem dimensão ontológica, visando a obtenção de “efeitos” eficazes, sem quaisquer pretensões de validade cognitiva. Puro pragmatismo!
Esta fase corresponde a um período em que se verifica já uma enorme expansão do sistema mediático (a partir dos anos oitenta do século passado) e em que os media passam a constituir o verdadeiro espaço público, onde toda a comunicação política se processa. Sobretudo o espaço público electrónico, onde é possível usar, quase sem limites, as técnicas ‘spin’. Ou seja, onde é possível comunicar fora da dicotomia verdade/mentira a que de algum modo a comunicação escrita obrigava. Com efeito, a comunicação com imagens permite um ficcionamento da realidade que escapa a esta dicotomia, induzindo percepções e comportamentos com enorme eficácia. De ‘spin doctors’ fala-se, por exemplo, quando analisamos a comunicação política de Bush ou de Berlusconi.
A “consultadoria” em comunicação política tornou-se fundamental quando os media ganharam uma centralidade inquestionável no processo político. Nesta fase, os cidadãos têm, de facto, um maior acesso à informação quer no plano documental quer no plano global, designadamente através da imagem. De facto, através desta já é possível ao cidadão formular os seus juízos usando simplesmente os mecanismos cognitivos que usa na sua vida quotidiana. Ora, tudo isto exigiu sofisticação nas técnicas de obtenção do consenso. Só que, estas, em vez de evoluírem em qualidade, acabaram por crescer em capacidade de distorção cognitiva do real, produzindo sistematicamente efeitos prejudiciais à própria democracia, desacreditando-a e fragilizando-a. É por isso que muitos, hoje, dizem que a “credibilidade” é o valor central em política, quando alastra uma perigosa crise de confiança naqueles valores institucionais que sempre se constituíram como suportes fundamentais da democracia representativa."
João de Almeida Santos
Num interessante livro, “Spin” (Venezia, Marsilio, 2007), Giancarlo Bosetti, director da excelente revista italiana “Reset”, faz uma sugestiva proposta sobre as relações entre cultura, intelectuais e política. Que reza mais ou menos assim: se é verdade que, para Karl Marx, a religião era o “ópio do povo”, funcionando como um alucinogéneo que mantinha os povos em submissa dependência dos poderes estabelecidos, para Raymond Aron, o autor de “O ópio dos intelectuais”, é o próprio marxismo que se torna “ópio dos intelectuais”, uma vez que a revolução e a utopia funcionam como válvulas de escape das misérias de um mundo a que não se adaptam, porque injusto, imperfeito e incoerente. Esta tese faz-me lembrar o livro de Wolf Lepenies sobre a ascensão e queda dos intelectuais. E aquela alternância entre melancolia e revolução que tantas vezes dilacera o coração e a mente do intelectual. Porque quando não se projecta activamente na revolução, ele entra inevitavelmente numa melancolia depressiva, sofrendo pelo estado deplorável do mundo.
Acontece que, em ambos os casos, se está perante o reconhecimento da força material das ideias, capazes de moldar e determinar o real e os comportamentos humanos. A concepção de cultura que subjaz a ambas as posições, de Marx e de Aron, aponta para o reconhecimento da existência de uma dimensão verdadeiramente ontológica, substancial e não puramente instrumental das formas culturais, sejam elas religiosas ou filosóficas. Mesmo no caso de Marx (que não da ortodoxia), não é aceitável a ideia de que, para ele, a religião seja igual a pura mentira, a ilusão programada, instrumental. Identificando religião com ideologia, Marx refere-se sobretudo ao modelo de representação do real, como uma “camera obscura”, onde o real surge invertido e as causas surgem como consequências, numa clara oposição ao modo de apreensão do real pela ciência. É, no meu entendimento, no interior da dicotomia ideologia/ciência que deve ser entendida a natureza da ideologia.
Ora, Giancarlo Bosetti propõe-nos uma terceira fase nas relações entre intelectuais, cultura e política: a fase ‘spin’. Ou seja: o ‘spinning’ como “ópio do século XXI”. Trata-se de uma “tecnologia invasiva”, ou política com “efeito”. O discurso político é aqui emitido com efeitos de distorção capazes de induzir no receptor leituras e comportamentos vantajosos para o emissor. Trata-se, agora, de uma comunicação meramente instrumental, sem dimensão ontológica, visando a obtenção de “efeitos” eficazes, sem quaisquer pretensões de validade cognitiva. Puro pragmatismo!
Esta fase corresponde a um período em que se verifica já uma enorme expansão do sistema mediático (a partir dos anos oitenta do século passado) e em que os media passam a constituir o verdadeiro espaço público, onde toda a comunicação política se processa. Sobretudo o espaço público electrónico, onde é possível usar, quase sem limites, as técnicas ‘spin’. Ou seja, onde é possível comunicar fora da dicotomia verdade/mentira a que de algum modo a comunicação escrita obrigava. Com efeito, a comunicação com imagens permite um ficcionamento da realidade que escapa a esta dicotomia, induzindo percepções e comportamentos com enorme eficácia. De ‘spin doctors’ fala-se, por exemplo, quando analisamos a comunicação política de Bush ou de Berlusconi.
A “consultadoria” em comunicação política tornou-se fundamental quando os media ganharam uma centralidade inquestionável no processo político. Nesta fase, os cidadãos têm, de facto, um maior acesso à informação quer no plano documental quer no plano global, designadamente através da imagem. De facto, através desta já é possível ao cidadão formular os seus juízos usando simplesmente os mecanismos cognitivos que usa na sua vida quotidiana. Ora, tudo isto exigiu sofisticação nas técnicas de obtenção do consenso. Só que, estas, em vez de evoluírem em qualidade, acabaram por crescer em capacidade de distorção cognitiva do real, produzindo sistematicamente efeitos prejudiciais à própria democracia, desacreditando-a e fragilizando-a. É por isso que muitos, hoje, dizem que a “credibilidade” é o valor central em política, quando alastra uma perigosa crise de confiança naqueles valores institucionais que sempre se constituíram como suportes fundamentais da democracia representativa."
João de Almeida Santos
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