domingo, novembro 18, 2007

O legislador sem rosto

"As alterações recentemente aprovadas ao Código Penal (CP) e ao Código de Processo Penal (CPP), embora contenham medidas positivas, suscitaram algumas questões polémicas, que deveriam ser adequadamente debatidas e esclarecidas pela comunidade jurídica. Infelizmente, porém, ninguém assume a responsabilidade pelas alterações introduzidas nos projectos iniciais e justifica as soluções encontradas, parecendo que existe um legislador sem rosto, que impõe estas soluções sem que se saiba como nem porquê.

A situação mais grave é a do novo art. 30.º, n.º3, CP, que veio permitir a aplicação da figura do crime continuado aos crimes contra bens eminentemente pessoais, tratando-se da mesma vítima. Já se defendeu publicamente que esta alteração visou a situação particular de um processo em curso, o que constitui uma acusação muito grave, que deveria ser cabalmente desmentida. Mas, em qualquer caso, a norma é sempre insustentável, pois não é concebível que alguém que comete vários crimes contra uma única vítima, provocando-lhe um muito maior sofrimento, obtenha da lei um tratamento de favor face a quem comete os mesmos crimes contra vítimas distintas. Apelo, por isso, à revogação imediata dessa norma, mesmo que, como é sabido, tal não afecte os processos em curso.

Outra disposição que igualmente merece severa crítica é o novo art. 88.º, n.º4, CPP, que pune como crime de desobediência simples a publicação, por qualquer meio, de escutas realizadas no âmbito de um processo, mesmo que esse processo não esteja sujeito a segredo de justiça, a menos que haja consentimento expresso dos intervenientes. Como se calcula, esta norma inviabiliza na prática a publicação de escutas, uma vez que o consentimento de todos os intervenientes raramente será conseguido. Ora não se compreende como é que um elemento de um processo penal, que é público, e que por isso não está na titularidade de qualquer particular, possa ver a sua publicação dependente de autorização desse mesmo particular, a quem passa assim a reconhecer-se direitos sobre um elemento do processo. No limite, o particular até poderia solicitar uma retribuição para concessão da autorização, negociando a publicação de elementos do processo penal, o que seria um escândalo.

Parece evidente que o facto de alguém necessitar de autorização para publicar uma notícia constitui uma forma de censura à Imprensa. Além disso, a partir de agora os cidadãos vão deixar de poder conhecer a prova em que se fundamentaram as decisões penais condenatórias baseadas em escutas. E não é correcto sustentar, como foi defendido sem qualquer base legal, que se a sentença transcrevesse a escuta deixaria de existir a proibição (!). A lei nada dispõe que permita sustentar essa solução, e o que dela resulta parece ser exactamente o contrário se a sentença transcrever a escuta, deixará de poder ser integralmente publicada sem autorização. Em virtude da sua manifesta inconstitucionalidade, esta norma deve também ser revogada.

Estas duas soluções contribuem gravemente para o desprestígio do nosso sistema de justiça e não é o facto de resultarem de um pacto de contornos duvidosos entre os dois maiores partidos que deve levar a que se assista impavidamente à sua introdução no nosso ordenamento jurídico. Gostaria imenso de ver a Ordem dos Advogados na primeira linha deste combate, pelo que muito apreciaria que fosse abandonada a actual linha panglossiana de aplauso às novas leis e se fizesse o apelo a estas alterações, que são urgentes e necessárias
."

Luís Menezes Leitão

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