“Rumsfeldiana”
"Não foi a ausência de um plano de paz que constituiu o mais grave erro político americano: foi a confusão sobre a natureza da guerra.
Num ensaio integrado na colectânea The Second Plane, Martin Amis relata um episódio ocorrido durante a sua participação num programa da série Question Time, da BBC. No decurso do programa, uma jovem indignada interpelou-o com um singelo argumento: como os EUA haviam fornecido armamento aos afegãos durante a resistência contra a ocupação soviética, eram moralmente responsáveis pelas acções dos talibans e da al-Qa’ida. A jovem concluiu que os americanos deviam ter bombardeado o seu próprio país em retaliação pelo 9/11. Em vez de motivar a entrada no estúdio de uma equipa de enfermeiros psiquiátricos, a sugestão foi acolhida com o aplauso unânime da plateia.
O episódio é sintomático da enorme radicalização da opinião pública ocidental sobre o significado e consequências dos ataques terroristas aos EUA e da ocupação americana do Iraque. Esta radicalização envolve aspectos culturais e éticos.
Ao mesmo tempo que o 9/11 foi perdendo saliência, Bin Laden adquiriu uma natureza difusa, irreal, e a ocupação militar do Iraque tornou-se o acontecimento definidor da cultura da década, secundarizando os ataques terroristas contra os EUA. Por outro lado, a crescente difusão de teorias de conspiração impermeáveis à refutação empírica, contribuiu para transformar os jihadistas de responsáveis por actos moralmente abjectos em meros instrumentos de jogos políticos sinistros, que servem interesses económicos vagamente identificados com o petróleo e os “grandes negócios”. O inimigo externo e anti-ocidental tornou-se num travesti dos ódios favoritos da esquerda: o lucro, o capitalismo e a globalização. Como observa Ross Douthat, num excelente artigo sobre a influência da guerra do Iraque na cultura popular, é significativo que o maior sucesso cinematográfico da década seja a trilogia Jason Bourne, um agente que une a eficiência de James Bond às especulações conspirativas de Noam Chomsky.
Na saga protagonizada por Bourne, o ‘inimigo interno’, ébrio de poder, está obcecado pela ‘hubris’ imperial. Curiosamente a descrição é muito semelhante à que Martin Amis faz de George W. Bush, ou ao retrato de Bob Woodward do presidente como uma versão de Nixon, cego pelo milenarismo evangelista. Mas o papel de éminence grise, que controla o governo e o coloca ao serviço dos interesses capitalistas (e judeus) assenta que nem uma luva em Donald Rumsfeld, um antigo membro da administração Nixon. Sucede que as teorias da conspiração acabam por ter o efeito perverso de relativizar as genuínas responsabilidades políticas da administração norte-americana. E as de Rumsfeld são grandes.
A administração norte-americana mentiu sobre as motivações para a ocupação militar do Iraque quando usou o argumento das armas de destruição massiva como ‘casus belli’. Mas ao contrário das teorias conspiratórias, fê-lo precisamente por acreditar na sua existência. O argumento da guerra preventiva, associado a um ideal absurdo de democratização do Médio Oriente a tiro de canhão foi julgado mais aceitável para o moralismo internacionalista do que a lógica geopolítica de transformação do balanço de poderes no Golfo Pérsico, usando a ocupação do Iraque para pressionar a Arábia Saudita a agir contra o jihadismo.
Contrariamente à opinião dominante, a “mentira original” é irrelevante do ponto de vista político e militar. Também não foi a ausência de um plano de paz que constituiu o mais grave erro político americano: foi a confusão sobre a natureza da guerra. Desde 2003 travaram-se duas guerras no Iraque: a Blitzkrieg que derrubou Saddam e uma guerra de guerrilha, que, com diferentes fases, dura até hoje. Rumsfeld subestimou gravemente esta segunda guerra, caracterizando-a como o “último estertor” do regime Ba’ath. Incapaz de reagir ou adaptar a estratégia, negou a realidade e nem o embaraçoso episódio da “revolta dos generais” em 2006 o levou a demitir-se. Só no início de 2007, depois da sua resignação, é que Bush nomeou uma liderança militar eficaz e inteligente.
Cinco anos depois da ocupação, com um custo total estimado de três biliões de dólares e mais de 4000 americanos mortos, o estado de coisas não permite qualquer declaração de sucesso. Ironicamente, a estratégia que produziu um módico de estabilização na carnificina foi precisamente o oposto do axioma de Rumsfeld (a ‘des-Ba’athificação’ do Iraque). Excluindo a sugestão de ‘auto-bombardeamento’ da participante no programa da BBC, poucas coisas poderiam ter causado tamanho estrago político aos EUA quanto a forma como a ocupação militar do Iraque foi conduzida."
Fernando Gabriel
Num ensaio integrado na colectânea The Second Plane, Martin Amis relata um episódio ocorrido durante a sua participação num programa da série Question Time, da BBC. No decurso do programa, uma jovem indignada interpelou-o com um singelo argumento: como os EUA haviam fornecido armamento aos afegãos durante a resistência contra a ocupação soviética, eram moralmente responsáveis pelas acções dos talibans e da al-Qa’ida. A jovem concluiu que os americanos deviam ter bombardeado o seu próprio país em retaliação pelo 9/11. Em vez de motivar a entrada no estúdio de uma equipa de enfermeiros psiquiátricos, a sugestão foi acolhida com o aplauso unânime da plateia.
O episódio é sintomático da enorme radicalização da opinião pública ocidental sobre o significado e consequências dos ataques terroristas aos EUA e da ocupação americana do Iraque. Esta radicalização envolve aspectos culturais e éticos.
Ao mesmo tempo que o 9/11 foi perdendo saliência, Bin Laden adquiriu uma natureza difusa, irreal, e a ocupação militar do Iraque tornou-se o acontecimento definidor da cultura da década, secundarizando os ataques terroristas contra os EUA. Por outro lado, a crescente difusão de teorias de conspiração impermeáveis à refutação empírica, contribuiu para transformar os jihadistas de responsáveis por actos moralmente abjectos em meros instrumentos de jogos políticos sinistros, que servem interesses económicos vagamente identificados com o petróleo e os “grandes negócios”. O inimigo externo e anti-ocidental tornou-se num travesti dos ódios favoritos da esquerda: o lucro, o capitalismo e a globalização. Como observa Ross Douthat, num excelente artigo sobre a influência da guerra do Iraque na cultura popular, é significativo que o maior sucesso cinematográfico da década seja a trilogia Jason Bourne, um agente que une a eficiência de James Bond às especulações conspirativas de Noam Chomsky.
Na saga protagonizada por Bourne, o ‘inimigo interno’, ébrio de poder, está obcecado pela ‘hubris’ imperial. Curiosamente a descrição é muito semelhante à que Martin Amis faz de George W. Bush, ou ao retrato de Bob Woodward do presidente como uma versão de Nixon, cego pelo milenarismo evangelista. Mas o papel de éminence grise, que controla o governo e o coloca ao serviço dos interesses capitalistas (e judeus) assenta que nem uma luva em Donald Rumsfeld, um antigo membro da administração Nixon. Sucede que as teorias da conspiração acabam por ter o efeito perverso de relativizar as genuínas responsabilidades políticas da administração norte-americana. E as de Rumsfeld são grandes.
A administração norte-americana mentiu sobre as motivações para a ocupação militar do Iraque quando usou o argumento das armas de destruição massiva como ‘casus belli’. Mas ao contrário das teorias conspiratórias, fê-lo precisamente por acreditar na sua existência. O argumento da guerra preventiva, associado a um ideal absurdo de democratização do Médio Oriente a tiro de canhão foi julgado mais aceitável para o moralismo internacionalista do que a lógica geopolítica de transformação do balanço de poderes no Golfo Pérsico, usando a ocupação do Iraque para pressionar a Arábia Saudita a agir contra o jihadismo.
Contrariamente à opinião dominante, a “mentira original” é irrelevante do ponto de vista político e militar. Também não foi a ausência de um plano de paz que constituiu o mais grave erro político americano: foi a confusão sobre a natureza da guerra. Desde 2003 travaram-se duas guerras no Iraque: a Blitzkrieg que derrubou Saddam e uma guerra de guerrilha, que, com diferentes fases, dura até hoje. Rumsfeld subestimou gravemente esta segunda guerra, caracterizando-a como o “último estertor” do regime Ba’ath. Incapaz de reagir ou adaptar a estratégia, negou a realidade e nem o embaraçoso episódio da “revolta dos generais” em 2006 o levou a demitir-se. Só no início de 2007, depois da sua resignação, é que Bush nomeou uma liderança militar eficaz e inteligente.
Cinco anos depois da ocupação, com um custo total estimado de três biliões de dólares e mais de 4000 americanos mortos, o estado de coisas não permite qualquer declaração de sucesso. Ironicamente, a estratégia que produziu um módico de estabilização na carnificina foi precisamente o oposto do axioma de Rumsfeld (a ‘des-Ba’athificação’ do Iraque). Excluindo a sugestão de ‘auto-bombardeamento’ da participante no programa da BBC, poucas coisas poderiam ter causado tamanho estrago político aos EUA quanto a forma como a ocupação militar do Iraque foi conduzida."
Fernando Gabriel
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