Socialismo ou liberalismo social?
"É inteiramente verdade que o socialismo democrático, sob a designação “social democracia”, se demarcou desde cedo do marxismo.
Na sua crónica de anteontem no “Público”, Vital Moreira critica, com a probidade e o rigor intelectual que são seu timbre, o artigo que aqui escrevi na semana passada “Adeus socialismo”. Nesse artigo, eu defendia que o projecto histórico do socialismo, nas suas diferentes formas, está hoje esgotado. Vital Moreira contrapõe que esse esgotamento afectou o socialismo comunista, mas não o socialismo democrático. Retomando os termos do próprio Vital Moreira, parece-me que a sua tese, não sendo embora inédita, não é convincente.
É inteiramente verdade que o socialismo democrático, sob a designação “social democracia”, se demarcou desde cedo do marxismo (com Bernstein). Este socialismo democrático abandonou a visão dialéctica da história e a ideia de revolução social, para passar a aceitar as liberdades básicas e o processo político democrático. É também verdade que o socialismo democrático abdicou, desde finais dos anos cinquenta (especialmente no PT britânico e no SPD alemão), da estatização da economia e da sua direcção centralizada como caminho para a sociedade socialista.
Mas é precisamente devido a este processo secular de distanciamento em relação à matriz marxista que convém inquirir sobre o que distingue, afinal de contas, o socialismo democrático do liberalismo. Julgo que a única distinção possível reside na desconfiança do socialismo face às liberdades económicas e ao funcionamento do mercado livre (o que pode conduzir à socialização de alguns meios de produção, ou à resistência à sua privatização). Não é assim no pensamento liberal. Os liberais aderem às liberdades económicas e ao mercado por razões de eficiência, mas também por razões morais. Os liberais consideram que a economia capitalista, para além de ser a única que funciona bem, é também aquela que melhor assegura a autonomia individual e a manutenção de uma sociedade livre. Os socialistas, por seu turno, consideram que a liberdade económica e o mercado escondem a pura lógica dos interesses que nenhuma “mão invisível” consegue compatibilizar. Os socialistas podem aceitar a liberdade económica e o mercado por razões de eficiência, mas fazem-no com uma relutância baseada em princípios.
No entanto, até mesmo este socialismo residual deixou de fazer sentido depois do fim da Guerra Fria, num contexto de expansão da democracia liberal e de abertura de espaços de troca de bens e serviços e de circulação de pessoas cada vez mais vastos. Neste quadro, um país que queira ater-se ao que restou do socialismo está condenado ao isolamento, ao empobrecimento e, no limite, à sua autodestruição como entidade viável. Por isso, muitos partidos ditos socialistas adaptaram-se – e ainda bem – ao novo contexto. Como reconhece Vital Moreira, eles passaram a ser genuinamente liberais na política e na economia; mas associaram o seu liberalismo de base à defesa dos direitos sociais, da justiça social, etc. Ora, o grande equívoco de Vital Moreira consiste em pensar que a defesa deste conjunto de valores configura ainda uma forma de socialismo.
O programa político que Vital Moreira considera socialista é, na verdade, o programa do liberalismo social tal como foi pensado desde Stuart Mill e, muito especialmente, pelo chamado “novo liberalismo”, associado a autores como John Rawls, Ronald Dworkin, Bruce Ackerman, Amartya Sen, etc. Estes autores representam um pensamento inquestionavelmente de esquerda, mas que não é socialista. Parece-me que eles fornecem também o melhor enquadramento teórico possível para a acção política de muitos partidos ditos socialistas na actualidade. Neste sentido, também os argumentos que Vital Moreira costuma apresentar em defesa das políticas prosseguidas pelo actual Governo do PS se inserem muito melhor numa visão liberal social do que na tradição do socialismo democrático. A única vantagem inerente à utilização de uma linguagem socialista, como Vital Moreira acaba por reconhecer no final do seu artigo, é de natureza simbólica e estratégica: ela impede que a extrema esquerda se aproprie desse património. Porém, o meu argumento sobre o esgotamento do socialismo enquanto projecto político é de cariz substantivo e não meramente estratégico."
João Cardoso Rosas
Na sua crónica de anteontem no “Público”, Vital Moreira critica, com a probidade e o rigor intelectual que são seu timbre, o artigo que aqui escrevi na semana passada “Adeus socialismo”. Nesse artigo, eu defendia que o projecto histórico do socialismo, nas suas diferentes formas, está hoje esgotado. Vital Moreira contrapõe que esse esgotamento afectou o socialismo comunista, mas não o socialismo democrático. Retomando os termos do próprio Vital Moreira, parece-me que a sua tese, não sendo embora inédita, não é convincente.
É inteiramente verdade que o socialismo democrático, sob a designação “social democracia”, se demarcou desde cedo do marxismo (com Bernstein). Este socialismo democrático abandonou a visão dialéctica da história e a ideia de revolução social, para passar a aceitar as liberdades básicas e o processo político democrático. É também verdade que o socialismo democrático abdicou, desde finais dos anos cinquenta (especialmente no PT britânico e no SPD alemão), da estatização da economia e da sua direcção centralizada como caminho para a sociedade socialista.
Mas é precisamente devido a este processo secular de distanciamento em relação à matriz marxista que convém inquirir sobre o que distingue, afinal de contas, o socialismo democrático do liberalismo. Julgo que a única distinção possível reside na desconfiança do socialismo face às liberdades económicas e ao funcionamento do mercado livre (o que pode conduzir à socialização de alguns meios de produção, ou à resistência à sua privatização). Não é assim no pensamento liberal. Os liberais aderem às liberdades económicas e ao mercado por razões de eficiência, mas também por razões morais. Os liberais consideram que a economia capitalista, para além de ser a única que funciona bem, é também aquela que melhor assegura a autonomia individual e a manutenção de uma sociedade livre. Os socialistas, por seu turno, consideram que a liberdade económica e o mercado escondem a pura lógica dos interesses que nenhuma “mão invisível” consegue compatibilizar. Os socialistas podem aceitar a liberdade económica e o mercado por razões de eficiência, mas fazem-no com uma relutância baseada em princípios.
No entanto, até mesmo este socialismo residual deixou de fazer sentido depois do fim da Guerra Fria, num contexto de expansão da democracia liberal e de abertura de espaços de troca de bens e serviços e de circulação de pessoas cada vez mais vastos. Neste quadro, um país que queira ater-se ao que restou do socialismo está condenado ao isolamento, ao empobrecimento e, no limite, à sua autodestruição como entidade viável. Por isso, muitos partidos ditos socialistas adaptaram-se – e ainda bem – ao novo contexto. Como reconhece Vital Moreira, eles passaram a ser genuinamente liberais na política e na economia; mas associaram o seu liberalismo de base à defesa dos direitos sociais, da justiça social, etc. Ora, o grande equívoco de Vital Moreira consiste em pensar que a defesa deste conjunto de valores configura ainda uma forma de socialismo.
O programa político que Vital Moreira considera socialista é, na verdade, o programa do liberalismo social tal como foi pensado desde Stuart Mill e, muito especialmente, pelo chamado “novo liberalismo”, associado a autores como John Rawls, Ronald Dworkin, Bruce Ackerman, Amartya Sen, etc. Estes autores representam um pensamento inquestionavelmente de esquerda, mas que não é socialista. Parece-me que eles fornecem também o melhor enquadramento teórico possível para a acção política de muitos partidos ditos socialistas na actualidade. Neste sentido, também os argumentos que Vital Moreira costuma apresentar em defesa das políticas prosseguidas pelo actual Governo do PS se inserem muito melhor numa visão liberal social do que na tradição do socialismo democrático. A única vantagem inerente à utilização de uma linguagem socialista, como Vital Moreira acaba por reconhecer no final do seu artigo, é de natureza simbólica e estratégica: ela impede que a extrema esquerda se aproprie desse património. Porém, o meu argumento sobre o esgotamento do socialismo enquanto projecto político é de cariz substantivo e não meramente estratégico."
João Cardoso Rosas
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