quinta-feira, junho 26, 2008

FATALIDADES

"Já se percebeu que o custo dos combustíveis causou ou irá causar o protesto literalmente inflamado de pescadores, transportadoras de carga, agricultores, taxistas, bombeiros, rebocadores, transportadoras de passageiros, Pedro Lamy, companhias aéreas, motards, empresas de cruzeiros marítimos ou fluviais, firmas de aluguer de helicópteros, motoristas de limusina (uns sete) e moços que aparam relvados com aquelas máquinas a motor. Em suma, todos os que, quando não se encontram em greve, trabalham em ramos movidos a gasóleo ou gasolina estão dispostos a provocar o pandemónio necessário para que as suas reivindicações vinguem.

Uma alternativa ao pandemónio seria mudarem de ramo. Da contabilidade à poesia, do ciclismo à cirurgia plástica, do toureio a pé à coluna jornalística, existem profissões menos dependentes dos derivados do vil petróleo. Mesmo assim, não tem havido notícias de muitos pescadores e camionistas inclinados a trocar a traineira e o volante do TIR pelos balancetes ou pelos sonetos de verso branco.

Compreende-se. Sobretudo porque, além de mais cansativos, os restantes ofícios ainda se mostram financeiramente mais arriscados que o bloqueio de estradas, o espancamento de colegas e as reuniões destinadas a arrecadar mesuras do ministro que estiver a jeito. Desde que se garanta o barulho, as mesuras não tardam: os insurgentes sabem que o Governo cede e, por sua vez, o Governo sabe que o vulgar contribuinte paga.

Ou não paga? Tal como contornou fronteiras partidárias, não é forçoso que a indignação violenta se limite à questão dos combustíveis. Num futuro breve, o precedente governamental torna plausível que qualquer conjunto de descontentes decida impor os seus apetites pela força, a pretexto do preço do pão ou dos pacotes de férias em Punta Cana.

No meio de tudo isto, é engraçada a alegria de alguns comentadores, que adivinham o caos e imaginam um combate contra a desigualdade e o falhanço de um suposto modelo "neoliberal". Por acaso, na realidade sucede sensivelmente o oposto. O azedume que por aí vai é uma reacção furiosa à tendência igualitária que obriga a partilhar recursos com a China, com a Índia e com os "emergentes" que aproveitam a globalização para prospe- rar. Em simultâneo, o que se chora nas ruas é a agonia do Estado-Providência, já incapaz de corrigir os desmandos da época. Com as vantagens e o sofrimento que implicam, a igualdade e o liberalismo (chamemos-lhe assim) estão apenas a chegar, embora em Portugal, cujo atarantado Governo pondera atacar o aumento dos preços com o aumen- to dos impostos, o que ameaça chegar é outra coisa, completamente diferente e tipicamente fatal
."

Alberto Gonçalves

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