Irresponsabilidade histórica
"Se for criado um novo partido à esquerda do PS, parafraseando Alegre, estaremos perante uma autêntica irresponsabilidade histórica.
Num artigo escrito há cerca de um mês, Manuel Alegre afirmava que “uma nova esquerda só poderá nascer de várias rupturas das esquerdas consigo mesmas”. Paradoxalmente, entre estas várias rupturas, há uma que se tem revelado particularmente difícil: abandonar a ideia de que todas as políticas dos governos PS são de direita. O encontro deste fim-de-semana não só foi mais um exemplo da pouca abertura das esquerdas a levarem a cabo essa ruptura, como até consolidou a ideia que a alternativa de esquerda se faz contra o PS.
Não há, convenhamos, até aqui qualquer elemento de novidade. O código genético da esquerda portuguesa é marcado pela competitividade interna e não existem sinais de que estejam a mudar os termos da relação entre socialistas e as outras esquerdas. O essencial do entendimento entre as esquerdas continua a depender de uma hipotética capitulação do maior partido de esquerda às mãos de partidos social e eleitoralmente menos representativos. Ou seja, construir uma alternativa confunde-se invariavelmente com a ideia de que o PS deveria, em última análise, adoptar um programa político alternativo, proposto pelas outras esquerdas.
Este velho tabu, que agora adquiriu novos contornos, tem tido consequências para a política, mas, também, para as políticas públicas.
Desde logo, ao inviabilizar o diálogo entre toda a esquerda, tem criado incentivos objectivos para que o PS procure enraizar-se eleitoralmente à sua direita (o que fragiliza o já de si frágil encastramento social dos partidos portugueses), ao mesmo tempo que, ao fragmentar a oferta política, abre o caminho para uma pulverização eleitoral das esquerdas (o que diminui as condições de governabilidade à esquerda).
Mas, acima de tudo, a escolha do PS como principal adversário das outras esquerdas tem limitado a consolidação de uma coligação política e social que permita enfrentar com robustez alguns dos problemas que o país enfrenta, maxime as desigualdades. Há umas semanas, Rui Tavares, num artigo no Público, justificava o peso eleitoral da esquerda em Portugal com o nosso padrão de desigualdades. Se assim é, combater as desigualdades deveria ser “uma responsabilidade histórica” e, pressupõe-se, um bom tema para o diálogo à esquerda. Será possível?
Não se combatem as desigualdades de hoje com os instrumentos do passado e muito menos com uma visão fixista do papel das políticas públicas face a “forças irresistíveis”. Centrando-me apenas em três dimensões fundamentais para enfrentar com eficácia as desigualdades: precisamos de mecanismos de regulação do mercado de trabalho sensíveis à transição para uma sociedade pós-industrial; de modernizar a protecção social de modo a compatibilizá-la com as transformações demográficas e de encontrar formas inovadoras de superar o défice de qualificação dos activos. O problema é que, por exemplo, enquanto não for abandonada a posição conservadora e retórica que trata, num típico exemplo de reflexo de Pavlov, a “flexigurança”, a sustentabilidade da segurança social ou as “novas oportunidades” para os activos como “políticas de direita”, dificilmente as esquerdas poderão conversar de modo consequente sobre o combate às desigualdades.
Ora perante a incapacidade de romper com o velho tabu, o sinal que saiu do “encontro das esquerdas” é de que o caminho a percorrer em Portugal pode ser semelhante ao percorrido na Alemanha, com a criação do Linke (uma cisão do SPD, liderada por Oskar Lafontaine, a que se juntaram outras esquerdas). Talvez valha a pena recordar as consequências do novo partido para a Alemanha: pulverização eleitoral que empurrou o país para uma situação de ingovernabilidade, que, por sua vez, levou a uma coligação de “bloco central”. Também em Portugal, se for criado um novo partido à esquerda do PS, parafraseando Alegre, estaremos perante uma autêntica irresponsabilidade histórica, que dificultará, ainda mais, a governabilidade à esquerda. Se assim acontecer, aliás, não demorará muito tempo até ouvirmos muitos dos que agora criticam indiferenciadamente as políticas do actual governo, a defender muitas delas como tendo sido de esquerda. Quanto ao combate às desigualdades, ficará bem entregue às mãos da direita, que legitimamente não fará do tema prioridade. Nada de novo, portanto."
Pedro Adão e Silva
Num artigo escrito há cerca de um mês, Manuel Alegre afirmava que “uma nova esquerda só poderá nascer de várias rupturas das esquerdas consigo mesmas”. Paradoxalmente, entre estas várias rupturas, há uma que se tem revelado particularmente difícil: abandonar a ideia de que todas as políticas dos governos PS são de direita. O encontro deste fim-de-semana não só foi mais um exemplo da pouca abertura das esquerdas a levarem a cabo essa ruptura, como até consolidou a ideia que a alternativa de esquerda se faz contra o PS.
Não há, convenhamos, até aqui qualquer elemento de novidade. O código genético da esquerda portuguesa é marcado pela competitividade interna e não existem sinais de que estejam a mudar os termos da relação entre socialistas e as outras esquerdas. O essencial do entendimento entre as esquerdas continua a depender de uma hipotética capitulação do maior partido de esquerda às mãos de partidos social e eleitoralmente menos representativos. Ou seja, construir uma alternativa confunde-se invariavelmente com a ideia de que o PS deveria, em última análise, adoptar um programa político alternativo, proposto pelas outras esquerdas.
Este velho tabu, que agora adquiriu novos contornos, tem tido consequências para a política, mas, também, para as políticas públicas.
Desde logo, ao inviabilizar o diálogo entre toda a esquerda, tem criado incentivos objectivos para que o PS procure enraizar-se eleitoralmente à sua direita (o que fragiliza o já de si frágil encastramento social dos partidos portugueses), ao mesmo tempo que, ao fragmentar a oferta política, abre o caminho para uma pulverização eleitoral das esquerdas (o que diminui as condições de governabilidade à esquerda).
Mas, acima de tudo, a escolha do PS como principal adversário das outras esquerdas tem limitado a consolidação de uma coligação política e social que permita enfrentar com robustez alguns dos problemas que o país enfrenta, maxime as desigualdades. Há umas semanas, Rui Tavares, num artigo no Público, justificava o peso eleitoral da esquerda em Portugal com o nosso padrão de desigualdades. Se assim é, combater as desigualdades deveria ser “uma responsabilidade histórica” e, pressupõe-se, um bom tema para o diálogo à esquerda. Será possível?
Não se combatem as desigualdades de hoje com os instrumentos do passado e muito menos com uma visão fixista do papel das políticas públicas face a “forças irresistíveis”. Centrando-me apenas em três dimensões fundamentais para enfrentar com eficácia as desigualdades: precisamos de mecanismos de regulação do mercado de trabalho sensíveis à transição para uma sociedade pós-industrial; de modernizar a protecção social de modo a compatibilizá-la com as transformações demográficas e de encontrar formas inovadoras de superar o défice de qualificação dos activos. O problema é que, por exemplo, enquanto não for abandonada a posição conservadora e retórica que trata, num típico exemplo de reflexo de Pavlov, a “flexigurança”, a sustentabilidade da segurança social ou as “novas oportunidades” para os activos como “políticas de direita”, dificilmente as esquerdas poderão conversar de modo consequente sobre o combate às desigualdades.
Ora perante a incapacidade de romper com o velho tabu, o sinal que saiu do “encontro das esquerdas” é de que o caminho a percorrer em Portugal pode ser semelhante ao percorrido na Alemanha, com a criação do Linke (uma cisão do SPD, liderada por Oskar Lafontaine, a que se juntaram outras esquerdas). Talvez valha a pena recordar as consequências do novo partido para a Alemanha: pulverização eleitoral que empurrou o país para uma situação de ingovernabilidade, que, por sua vez, levou a uma coligação de “bloco central”. Também em Portugal, se for criado um novo partido à esquerda do PS, parafraseando Alegre, estaremos perante uma autêntica irresponsabilidade histórica, que dificultará, ainda mais, a governabilidade à esquerda. Se assim acontecer, aliás, não demorará muito tempo até ouvirmos muitos dos que agora criticam indiferenciadamente as políticas do actual governo, a defender muitas delas como tendo sido de esquerda. Quanto ao combate às desigualdades, ficará bem entregue às mãos da direita, que legitimamente não fará do tema prioridade. Nada de novo, portanto."
Pedro Adão e Silva
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