domingo, fevereiro 15, 2009

Democracia mediática e Sócrates

"Por muito que custe, e custa a muita gente, na qual eu me incluo, no exercício democrático de escolha dos representantes do povo, o processo de formação de vontade faz-se cada vez mais por meios pouco dignificantes, se pensarmos em critério de rigor e integridade intelectuais.

A opinião estabelece-se através de mensagens indirectas reflectidas pela comunicação social - que bem justifica o apodo de 4º poder -, tanto pela de predicados, como pela meramente ruidosa (mas não é este ponto aquele a que quero dar protagonismo). Assim sendo, os destinatários absorvem realmente uma imagem espelhada, onde muitas vezes escapa a essência, em prejuízo de tonalidades, luzes ofuscantes ou mesmo distorções, claras ou difusas.

Mas tratando-se de um simples meio de transmissão, nesta perspectiva até um tanto passivo (e desejavelmente assim no domínio da factualidade), abre-se para o emissor a capacidade de manipulação no sentido desejado, não necessariamente o da benigna intenção de convencer com o argumento sério numa discussão leal.

Esta possibilidade atinge cada vez mais o nível do abuso, ao ponto de a informação estar antes substituída por uma passagem de impressões destinadas a condicionar a opinião pública, isto é, no final, o eleitorado.

Fazer política e persuadir, neste contexto, passa a ser muito mais um caso de marketing que uma questão de mobilizar inteligências.

Nas ditaduras da actualidade nacionalizam-se os canais de televisão e os jornais, podendo até permitir-se uma oposição convenientemente simbólica, e inunda-se as populações com factos pasteurizados e pacotes de imagens favoráveis que possibilitam governar por 50 anos, com um simulacro de eleições, que até se podem repetir até chegar à vitória. Chávez, com petróleo, e Mugabe, com hiperinflação, são os meus ídolos nesta liga desportiva.

Em democracia de 4º poder pós-moderna, a mediática, os mecanismos são os mesmos mas mais subtis, a mensagem oficial ou oficiosa não é passada brutalmente, antes por via de centrais ditas de informação, gabinetes de imagem e dissertação demagógica e populista, em que se mente ou engana através de discurso sedutor ou com aparência de verdade. O espectáculo de som e imagem assim criado podia ser patrocinado pela SuperBock (sem ofensa para a excelente cerveja), mas não abençoado pelos Cíceros do presente, nem mesmo pelos simples ditos homens bons, os "bonus pater familiae" do tempo dos romanos, mas seguramente também da actualidade.

E aqui, no domínio da política, as pessoas ficam mesmo indefesas porque não há crime de publicidade enganosa nem organizações independentes de consumidores que desmistifiquem. Ora, no Portugal a caminho de eleições, a charanga instalada choca e ofende a inteligência e o senso comum, e cria divisionismo adjectivo, incompatível com o cerrar fileiras que a resistência às crises (a permanente e a conjuntural) impõe.

Este arroubo filosófico foi provocado por mais uma do governo Sócrates, anunciando, com tubas e clarins, umas medidas fiscais ditas "Robin dos Bosques", consistindo na diminuição de deduções permitidas aos ricos para melhor distribuição aos mais desfavorecidos. Ferreira Leite, que manifestamente não foi educada para a luta livre(1), redarguiu que primeiro era necessário definir quem são os ditos "ricos", não fosse antes atingir-se a classe média alta.

Réplica de Sócrates: "Eles podem não saber, mas nós sabemos perfeitamente quem eles são"(2). Mas nunca definiu, na alocução, a que grupo se referia , devidamente definido, nem sequer por escalão fiscal, nem descreveu o impacto da medida salvadora.

A impressão estava passada, o resto é para coca-bichinhos com a paciência exausta, que escrevam crónicas.

E quais são os factos?
- As deduções dos ditos "ricos", digamos, os que auferem mais de 5.000 euros / mês(3) - como se apressou a exemplificar com o seu caso o 1º ministro - representam menos de 0,5% da massa fiscal, o suficiente para deixar para os outros apenas alguns cêntimos por ano.
- Infelizmente, os verdadeiros ricos em Portugal não pagam impostos, o encargo é para quem declara rendimentos do trabalho, como os que vão ser atingidos pela medida.
Sócrates "mente" com muita sinceridade, mas podia ter um pouco mais de consideração intelectual pelos portugueses. (4)


(1) O que me custa é o facto de lhe ser imputado um real falhanço de liderança da oposição, no fundo por se recusar a descer o nível do debate. Mas haverá alternativa metodológica?
(2) Não consigo assegurar ter reproduzido com total exactidão a primeira parte da frase.
(3) Estranha definição de riqueza, quando o salário mínimo no Luxemburgo é da ordem dos 1.500 euros/mês.
(4) Parece-me importante referir a minha completa ausência de simpatia partidária apriorística (que, não fora assim, já teria referido, em declaração de interesse). Aliás, já votei em todos os partidos de assento parlamentar, excepto Bloco de Esquerda
."

Fernando Braga de Matos

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