À mulher que me fez invejoso
"Há alguns anos, a revista The New Yorker publicou um cartoon com a Washington Square, em Nova Iorque. No parque, lá estavam o Arco do Triunfo, amas e carrinhos de bebé, pombas a depenicar, estudantes esparramados nos bancos de madeira corrida. A essa cena nova-iorquina era-lhe indiferente um disco-voador que pairava. Dentro deste, um extraterrestre comentava para o companheiro: "Não compreendo. No Michigan eles amam-nos." No Michigan, no Utah, em qualquer parte do mundo, os terráqueos adoram ovnis. Mas em Nova Iorque, por favor, os artistas da casa não dão qualquer espaço aos vindos de fora. Lá dentro é espectáculo contínuo.
Serve a introdução para desmitificar a fotógrafa Helen Levitt, que acaba de morrer aos 95 anos. Nasceu no Brooklyn, bairro nova-iorquino, conheceu Cartier--Bresson, em 1935, acatou o conselho dele para comprar uma Leica e passou a vida em Nova Iorque. Nas ruas de Nova Iorque. Evidentemente, foi a primeira fotógrafa a expor sozinha no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Evidentemente, o jornal The New York Times, esta semana, abriu o obituário dela assim: "Helen Levitt, uma das maiores fotógrafas do século XX que apanhou momentos fugazes de extraordinário lirismo, mistério e drama silencioso nas ruas da sua Nova Iorque natal, morreu bla-bla-bla..." Assim também eu.
Dessem-me uma Leica, dessem-me um breve contacto com Cartier-Bresson, ou melhor, não dessem, bastavam-me as ruas de Nova Iorque e quase um século. É tão fácil. Uma rua longa, alcatrão quanto baste, um muro daquela pedra que guarda a fuligem, três meninas negras e uma branca de totós louros, e todas interessadas em cinco bolas de sabão que pontuam, como notas musicais, o muro. Tudo a preto e branco, com as gamas de cinzento adequadas para tirar partido do preto e branco. Já está, é só clicar, passa para cá o atestado de grande artista do século XX.
Ou, outra foto, ao fundo a escada de seis degraus que abre as casas pobres para as ruas do Lower East Side e, no asfalto, uma miúda branca de sapatinhos ainda mais brancos mima um passo de bailarina, braços voadores, frente a um garotinho preto de calções que a mima a ela. Ou, outra foto, esta de 1945, no passeio da Rua 34, perto da Penn Station. Ao fundo uma loja que vende gelo e carvão, mais perto a lavandaria (laundry, com letras gordas na montra). O centro ocupa-nos o olhar: passa uma mulher fantasma, dois miúdos seguram a moldura de um espelho que já não está lá, espreita o triciclo de um lourito, vários garotos pobres apanhados numa felicidade que nem adivinham. Só isto. Helen Levitt passava e apanhava a nossa cidade. Só isso.
Admito, há algum mérito nela: soube escolher o seu tempo. Hoje eu já não poderia fotografar assim porque já não há crianças nas ruas de Nova Iorque."
Ferreira Fernandes
Serve a introdução para desmitificar a fotógrafa Helen Levitt, que acaba de morrer aos 95 anos. Nasceu no Brooklyn, bairro nova-iorquino, conheceu Cartier--Bresson, em 1935, acatou o conselho dele para comprar uma Leica e passou a vida em Nova Iorque. Nas ruas de Nova Iorque. Evidentemente, foi a primeira fotógrafa a expor sozinha no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. Evidentemente, o jornal The New York Times, esta semana, abriu o obituário dela assim: "Helen Levitt, uma das maiores fotógrafas do século XX que apanhou momentos fugazes de extraordinário lirismo, mistério e drama silencioso nas ruas da sua Nova Iorque natal, morreu bla-bla-bla..." Assim também eu.
Dessem-me uma Leica, dessem-me um breve contacto com Cartier-Bresson, ou melhor, não dessem, bastavam-me as ruas de Nova Iorque e quase um século. É tão fácil. Uma rua longa, alcatrão quanto baste, um muro daquela pedra que guarda a fuligem, três meninas negras e uma branca de totós louros, e todas interessadas em cinco bolas de sabão que pontuam, como notas musicais, o muro. Tudo a preto e branco, com as gamas de cinzento adequadas para tirar partido do preto e branco. Já está, é só clicar, passa para cá o atestado de grande artista do século XX.
Ou, outra foto, ao fundo a escada de seis degraus que abre as casas pobres para as ruas do Lower East Side e, no asfalto, uma miúda branca de sapatinhos ainda mais brancos mima um passo de bailarina, braços voadores, frente a um garotinho preto de calções que a mima a ela. Ou, outra foto, esta de 1945, no passeio da Rua 34, perto da Penn Station. Ao fundo uma loja que vende gelo e carvão, mais perto a lavandaria (laundry, com letras gordas na montra). O centro ocupa-nos o olhar: passa uma mulher fantasma, dois miúdos seguram a moldura de um espelho que já não está lá, espreita o triciclo de um lourito, vários garotos pobres apanhados numa felicidade que nem adivinham. Só isto. Helen Levitt passava e apanhava a nossa cidade. Só isso.
Admito, há algum mérito nela: soube escolher o seu tempo. Hoje eu já não poderia fotografar assim porque já não há crianças nas ruas de Nova Iorque."
Ferreira Fernandes
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