Os casamenteiros
"Numa altura em que o défice orçamental dispara, o endividamento público e privado progride com segurança, as falências sucedem-se, o desemprego continua a crescer, os beneficiários do rendimento mínimo se aproximam dos 400 mil e a crise, a caseira e a nossa, não promete sumir, o que faz o Governo? O indispensável: declara a aprovação do casamento entre homossexuais uma prioridade urgentíssima.
Estranhamente, nem toda a gente concorda. Certas associações ligadas à família, "família" em sentido abstracto, presumo, não se conformam com a possibilidade e tencionam levá-la a referendo. Do lado oposto (as matérias "fracturantes" são justamente as que têm dois lados, ambos aos saltos e aos gritinhos), a esquerda quer seguir a via parlamentar e recusar a referendária. O argumento da "família" é o de que isto é uma pouca-vergonha. O da esquerda é o de que não se submetem os direitos das pessoas a referendo.
Dito assim, não há dúvidas sobre qual dos argumentos soa melhor. Seria absurdo que alguém pudesse condicionar a "felicidade" de sujeitos "que se amam" e aspiram a consagrar esse "amor" na instituição matrimonial. Além de absurdo, é também uma maçada recorrente no mundo real. Ainda que os direitos dos cidadãos sejam estabelecidos pela lei, a lei não anda, ou não deveria andar, longe de um relativo "consenso" acerca do seu objecto. É por isso que, independentemente dos respectivos sexos, três (ou quatro, ou quinze) criaturas adultas e livres não conseguem casar mutuamente: porque a sociedade condena a poligamia e a lei determina em conformidade. A censura social, ou os "costumes", fundamenta igualmente a interdição penal do incesto, bem como obsta à pedofilia, aos pactos de suicídio e a inúmeras actividades que inúmeros indivíduos apreciam exercer e, por culpa de terceiros, legalmente não podem.
Sei que as comparações não são inéditas e que os activistas gay se indignam imenso com elas. De acordo com o cliché, não é sério equiparar a homossexualidade ao incesto. Pergunto: porquê? No máximo, compete-me jurar que convivo bem com a existência da primeira prática e mal com a existência da segunda. Mas trata-se apenas da minha opinião, que não vale mais nem menos do que a opinião do próximo. Acima de tudo, nenhuma das opiniões tem qualquer legitimação "científica" ou racional: a regra que sobra e conta, por incómodo que pareça, é a da quantidade.
Goste-se ou não, a felicidade das pessoas encontra-se permanentemente condicionada por juízos alheios. E mesmo quando a lei avança à frente da maioria desses juízos, o que de facto aconteceu em determinados lugares e em determinados episódios das conquistas cívicas, convém observar duas ligeiras condições: é preciso que a conquista em questão valha o confronto e é recomendável que o confronto (ou, no jargão actual, a "fractura") não seja demasiado profundo. Por acaso, duvido que um mero papel a decretar o matrimónio de dois homossexuais represente um grande avanço civilizacional. Em compensação, não me parece que, hoje, a generalidade dos portugueses se escandalizasse com o papel, embora o medo que o referendo inspira aos simpatizantes da "causa" sugira o contrário. Eles lá sabem, e não é muito democrático serem só eles a saber."
Alberto Gonçalves
Estranhamente, nem toda a gente concorda. Certas associações ligadas à família, "família" em sentido abstracto, presumo, não se conformam com a possibilidade e tencionam levá-la a referendo. Do lado oposto (as matérias "fracturantes" são justamente as que têm dois lados, ambos aos saltos e aos gritinhos), a esquerda quer seguir a via parlamentar e recusar a referendária. O argumento da "família" é o de que isto é uma pouca-vergonha. O da esquerda é o de que não se submetem os direitos das pessoas a referendo.
Dito assim, não há dúvidas sobre qual dos argumentos soa melhor. Seria absurdo que alguém pudesse condicionar a "felicidade" de sujeitos "que se amam" e aspiram a consagrar esse "amor" na instituição matrimonial. Além de absurdo, é também uma maçada recorrente no mundo real. Ainda que os direitos dos cidadãos sejam estabelecidos pela lei, a lei não anda, ou não deveria andar, longe de um relativo "consenso" acerca do seu objecto. É por isso que, independentemente dos respectivos sexos, três (ou quatro, ou quinze) criaturas adultas e livres não conseguem casar mutuamente: porque a sociedade condena a poligamia e a lei determina em conformidade. A censura social, ou os "costumes", fundamenta igualmente a interdição penal do incesto, bem como obsta à pedofilia, aos pactos de suicídio e a inúmeras actividades que inúmeros indivíduos apreciam exercer e, por culpa de terceiros, legalmente não podem.
Sei que as comparações não são inéditas e que os activistas gay se indignam imenso com elas. De acordo com o cliché, não é sério equiparar a homossexualidade ao incesto. Pergunto: porquê? No máximo, compete-me jurar que convivo bem com a existência da primeira prática e mal com a existência da segunda. Mas trata-se apenas da minha opinião, que não vale mais nem menos do que a opinião do próximo. Acima de tudo, nenhuma das opiniões tem qualquer legitimação "científica" ou racional: a regra que sobra e conta, por incómodo que pareça, é a da quantidade.
Goste-se ou não, a felicidade das pessoas encontra-se permanentemente condicionada por juízos alheios. E mesmo quando a lei avança à frente da maioria desses juízos, o que de facto aconteceu em determinados lugares e em determinados episódios das conquistas cívicas, convém observar duas ligeiras condições: é preciso que a conquista em questão valha o confronto e é recomendável que o confronto (ou, no jargão actual, a "fractura") não seja demasiado profundo. Por acaso, duvido que um mero papel a decretar o matrimónio de dois homossexuais represente um grande avanço civilizacional. Em compensação, não me parece que, hoje, a generalidade dos portugueses se escandalizasse com o papel, embora o medo que o referendo inspira aos simpatizantes da "causa" sugira o contrário. Eles lá sabem, e não é muito democrático serem só eles a saber."
Alberto Gonçalves
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