A coragem da denúncia ou a cobardia de um bufo
"Quem viveu ditaduras conhece o asco aos delatores. Carrega na memória o cheiro desses arenques, gente que armava armadilhas em troca de lentilhas. É desses biltres que o Fisco procura ao proteger denunciantes internos? Não: é dos outros. Parece paradoxo mas foi a democracia que consagrou a denúncia como "boa prática". Está na lei.
Vera Jardim, que o PS resgatou para substituir Cravinho no imaginário anticorrupção, começou bem. O presidente da nova comissão parlamentar contra a corrupção disse o que quer: "pouca filosofia" e "coisas concretas". Boa filosofia.
Filosofia que a Direcção-Geral de Impostos adoptou. Na proposta de código interno anticorrupção, que o Negócios hoje revela, a Administração Fiscal não somou doutrinas magníficas mas inúteis. E promete criar uma "linha verde" para que funcionários possam denunciar suspeitas de corrupção das suas chefias.
Estaremos a supor uma sociedade de bufos, a promover vinganças e mesquinhezes, a antever "Fahrenheit 451"? É isso que a repulsa à denúncia pidesca evoca. Mas não é o que a experiência mostra.
Foram denúncias de três mulheres que, em 2002, permitiram detectar os escândalos da Enron e da WorldCom. As três foram eleitas, pela "Time", "Mulheres do Ano", por mostrarem "o que são a coragem e os valores americanos". Ficaram conhecidas como as "whistleblowers". As que sopram...
A partir daí, a denúncia passou a ser "boa prática", em troca de protecção do denunciante (que não é anónimo mas é secreto). É recomendação da Comissão Europeia. Está previsto no novo Código de Processo Penal português. Está no Código do Governo das Sociedades da CMVM. Estava no programa do primeiro Governo PS. Que o colocou em diploma: garantias aos "denunciantes que sejam trabalhadores da Administração Pública e de empresas do sector empresarial do Estado".
Recomendações que poucas empresas adoptaram. O que as prejudicou, como se viu no caso Face Oculta, vitrina óbvia de como a corrupção medra em empresas do Estado. Como se soube de cartéis investigados pela Autoridade da Concorrência? Por denúncia de "insiders", praticamente a única forma de apanhar um cartel. Mas só possível por existir um estatuto de clemência ao primeiro denunciante. No Brasil, comemora-se por estes dias os 15 anos da linha telefónica "Disque Denúncia", para informar a polícia da prática de crimes.
A Administração Fiscal, como outros organismos do Estado, tinha a obrigação de entregar uma proposta anticorrupção. Podia ter feito como outros: palavras, palavras, palavras. Mas protege trabalhadores que denunciarem chefias corruptas. Leu bem: chefias. O que já de si altera os equilíbrios predominantes na Administração Pública, onde o chefe pode ser um gestor bestial ou uma besta quadrada mas está sempre a salvo da crítica e da avaliação daqueles que chefia. Usa, se quiser, a superioridade hierárquica como biombo.
Há poucas sanções por corrupção no Fisco e nenhuma é conhecida, segredo que este código também quer terminar. A "linha verde" do Fisco pressupõe uma educação para a cidadania que não temos, confia na própria incorruptibilidade daqueles a quem se faz a denúncia e tem de conseguir filtrar fautores com as piores intenções. Mas há combates só possíveis a partir de dentro. Assim é o da corrupção."
Pedro Santos Guerreiro
Vera Jardim, que o PS resgatou para substituir Cravinho no imaginário anticorrupção, começou bem. O presidente da nova comissão parlamentar contra a corrupção disse o que quer: "pouca filosofia" e "coisas concretas". Boa filosofia.
Filosofia que a Direcção-Geral de Impostos adoptou. Na proposta de código interno anticorrupção, que o Negócios hoje revela, a Administração Fiscal não somou doutrinas magníficas mas inúteis. E promete criar uma "linha verde" para que funcionários possam denunciar suspeitas de corrupção das suas chefias.
Estaremos a supor uma sociedade de bufos, a promover vinganças e mesquinhezes, a antever "Fahrenheit 451"? É isso que a repulsa à denúncia pidesca evoca. Mas não é o que a experiência mostra.
Foram denúncias de três mulheres que, em 2002, permitiram detectar os escândalos da Enron e da WorldCom. As três foram eleitas, pela "Time", "Mulheres do Ano", por mostrarem "o que são a coragem e os valores americanos". Ficaram conhecidas como as "whistleblowers". As que sopram...
A partir daí, a denúncia passou a ser "boa prática", em troca de protecção do denunciante (que não é anónimo mas é secreto). É recomendação da Comissão Europeia. Está previsto no novo Código de Processo Penal português. Está no Código do Governo das Sociedades da CMVM. Estava no programa do primeiro Governo PS. Que o colocou em diploma: garantias aos "denunciantes que sejam trabalhadores da Administração Pública e de empresas do sector empresarial do Estado".
Recomendações que poucas empresas adoptaram. O que as prejudicou, como se viu no caso Face Oculta, vitrina óbvia de como a corrupção medra em empresas do Estado. Como se soube de cartéis investigados pela Autoridade da Concorrência? Por denúncia de "insiders", praticamente a única forma de apanhar um cartel. Mas só possível por existir um estatuto de clemência ao primeiro denunciante. No Brasil, comemora-se por estes dias os 15 anos da linha telefónica "Disque Denúncia", para informar a polícia da prática de crimes.
A Administração Fiscal, como outros organismos do Estado, tinha a obrigação de entregar uma proposta anticorrupção. Podia ter feito como outros: palavras, palavras, palavras. Mas protege trabalhadores que denunciarem chefias corruptas. Leu bem: chefias. O que já de si altera os equilíbrios predominantes na Administração Pública, onde o chefe pode ser um gestor bestial ou uma besta quadrada mas está sempre a salvo da crítica e da avaliação daqueles que chefia. Usa, se quiser, a superioridade hierárquica como biombo.
Há poucas sanções por corrupção no Fisco e nenhuma é conhecida, segredo que este código também quer terminar. A "linha verde" do Fisco pressupõe uma educação para a cidadania que não temos, confia na própria incorruptibilidade daqueles a quem se faz a denúncia e tem de conseguir filtrar fautores com as piores intenções. Mas há combates só possíveis a partir de dentro. Assim é o da corrupção."
Pedro Santos Guerreiro
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