As outras vítimas da Igreja
"Da última vez que ouvira alusões a uma rede organizada de pedofilia, ensinaram-me tratar-se de uma cabala para desacreditar a liderança de um partido político nacional. Hoje, curiosamente, poucos sugerem que as correntes queixas de abusos sexuais na Igreja Católica integram uma cabala global para a desacreditar.
Aqui, os queixosos são de dois tipos. Em primeiro lugar, temos as eventuais vítimas dos abusos, já provados em tribunal ou à espera de prova. Em segundo lugar, e em número assaz superior, temos as vítimas de bancada, ou seja, todos os que, aparentemente alheios ao assunto, sofrem horrores com o assunto e sobre o assunto têm imensas opiniões. Quando um cidadão comum é suspeito de um crime grave, os tribunais enchem-se com duas dúzias de furiosos a reclamar sangue. Quando o suspeito acumula com o sacerdócio católico, os furiosos são aos milhares, juntam-se nos media e exigem a cabeça do suspeito, a cabeça dos superiores eclesiásticos que o terão protegido e, à semelhança do turco Ali Agca, a cabeça do Papa.
É compreensível que o sr. Agca, o modelo de lucidez que tentou matar o papa anterior, deseje a demissão do actual. É incompreensível que tantos o imitem, movidos por um asco à Igreja que espanta mesmo um ateu como eu. Na matéria em debate, limito-me a achar o trivial: os violadores devem ser castigados e as generalizações devem ser evitadas, conforme nos ensinam a evitá-las sempre que o assunto versa religiões que não nos são próximas.
Mas eu beneficiei de uma educação realmente laica, no sentido em que o papel da Igreja não poderia ter sido mais irrelevante. Cresci numa família em que a religião, qualquer religião, suscitava no máximo o ocasional comentário factual ou "histórico". Não havia juízos de valor, crença ou chacota: a espiritualidade apenas não era tema lá de casa. Fora de casa, ainda o era menos. Em crianças, os meus amigos sumiam esporadicamente a pretexto da catequese, coisa que para mim permanece um mistério desinteressante até hoje. Até hoje, por coincidência jamais conheci um padre e por convicção jamais assisti a uma cerimónia litúrgica (excepto, parcialmente, em dois ou três casamentos e funerais). Até hoje, aproveito do catolicismo o que do catolicismo me importa (a música, a pintura, a arquitectura) e deixo o resto para os fiéis ou, na questão da pedofilia, para a justiça. Em suma, não experimento sentimentos face a uma instituição que nunca me fez, ou ameaçou fazer, mal algum.
Por isso não concebo o ódio que certo ateísmo militante dedica à Igreja Católica, um ódio pronto a manifestar-se nos escândalos pedófilos e nas polémicas dos crucifixos, nas discussões do aborto e do preservativo, nas perspectivas da homossexualidade e do celibato - em tudo, afinal, o que na Igreja é comum à sociedade ou intrínseco à doutrina. A mera ausência de fé não explica tamanho rancor: a inveja desesperada dessa particular fé talvez explique, principalmente em quem perdeu outras fés no caminho. A verdade é que as existências de algum modo traumatizadas pelo catolicismo são em quantidade muito maior do que as notícias contam."
Alberto Gonçalves
Aqui, os queixosos são de dois tipos. Em primeiro lugar, temos as eventuais vítimas dos abusos, já provados em tribunal ou à espera de prova. Em segundo lugar, e em número assaz superior, temos as vítimas de bancada, ou seja, todos os que, aparentemente alheios ao assunto, sofrem horrores com o assunto e sobre o assunto têm imensas opiniões. Quando um cidadão comum é suspeito de um crime grave, os tribunais enchem-se com duas dúzias de furiosos a reclamar sangue. Quando o suspeito acumula com o sacerdócio católico, os furiosos são aos milhares, juntam-se nos media e exigem a cabeça do suspeito, a cabeça dos superiores eclesiásticos que o terão protegido e, à semelhança do turco Ali Agca, a cabeça do Papa.
É compreensível que o sr. Agca, o modelo de lucidez que tentou matar o papa anterior, deseje a demissão do actual. É incompreensível que tantos o imitem, movidos por um asco à Igreja que espanta mesmo um ateu como eu. Na matéria em debate, limito-me a achar o trivial: os violadores devem ser castigados e as generalizações devem ser evitadas, conforme nos ensinam a evitá-las sempre que o assunto versa religiões que não nos são próximas.
Mas eu beneficiei de uma educação realmente laica, no sentido em que o papel da Igreja não poderia ter sido mais irrelevante. Cresci numa família em que a religião, qualquer religião, suscitava no máximo o ocasional comentário factual ou "histórico". Não havia juízos de valor, crença ou chacota: a espiritualidade apenas não era tema lá de casa. Fora de casa, ainda o era menos. Em crianças, os meus amigos sumiam esporadicamente a pretexto da catequese, coisa que para mim permanece um mistério desinteressante até hoje. Até hoje, por coincidência jamais conheci um padre e por convicção jamais assisti a uma cerimónia litúrgica (excepto, parcialmente, em dois ou três casamentos e funerais). Até hoje, aproveito do catolicismo o que do catolicismo me importa (a música, a pintura, a arquitectura) e deixo o resto para os fiéis ou, na questão da pedofilia, para a justiça. Em suma, não experimento sentimentos face a uma instituição que nunca me fez, ou ameaçou fazer, mal algum.
Por isso não concebo o ódio que certo ateísmo militante dedica à Igreja Católica, um ódio pronto a manifestar-se nos escândalos pedófilos e nas polémicas dos crucifixos, nas discussões do aborto e do preservativo, nas perspectivas da homossexualidade e do celibato - em tudo, afinal, o que na Igreja é comum à sociedade ou intrínseco à doutrina. A mera ausência de fé não explica tamanho rancor: a inveja desesperada dessa particular fé talvez explique, principalmente em quem perdeu outras fés no caminho. A verdade é que as existências de algum modo traumatizadas pelo catolicismo são em quantidade muito maior do que as notícias contam."
Alberto Gonçalves
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