'Hip hop', rimas finais
"Na crónica da semana passada, escrevi umas linhas acerca do hip hop e da morte de um praticante do género numa perseguição policial. Sobre a morte, limitei-me a dizer que me pareceu mal explicada e desproporcionada. Sobre o hip hop, limitei-me a reproduzir algumas evidências repetidas por intelectuais americanos contemporâneos, por acaso pretos (ou negros, ou de cor, ou afro-americanos, ou o que quiserem) e não por acaso incomodados com o facto de semelhante subcultura poder ser representativa de uma etnia. Mais do que a respectiva pobreza musical ou lírica, os intelectuais em causa lamentam principalmente os "valores" assíduos em muito hip hop: a "glamourização" do gueto, a legitimação do crime, a misoginia e a homofobia.
Estas trivialidades despertaram uma pequena sublevação. O site do DN e a Internet em geral encheram-se de comentários destinados a afirmar a minha "intolerância" e a exigir a minha demissão, o degredo ou coisas assim tolerantes. Não percebi porquê. É claro que acho o hip hop uma miséria estética, como acho esteticamente miseráveis uns 95% (contas por baixo) da música popular produzida após 1955 (antes dessa data, o ratio melhora um bocadinho). A diferença está na influência e no crédito que, ao longo de duas ou três décadas, o hip hop adquiriu.
O heavy metal, para usar um exemplo normalmente associado a jovens brancos (ou caras-pálidas, ou caucasianos, ou o que quiserem), é de um primarismo similar, incluindo na celebração da violência (e na misoginia, etc.). Sucede que, ao contrário do hip hop, nem a "criatividade" do heavy metal beneficia de adulação externa ao culto (não conheço académicos empenhados em dissecar o lirismo da banda Nuclear Assault), nem o seu peso (sem trocadilho) ultrapassa círculos restritos.
Já o hip hop marca subúrbios inteiros, não só americanos. E se a popularidade do género alcança as classes médias (pretas e brancas), nestas a sua preponderância é residual ou decorativa. Nos bairros pobres e predominantemente pretos, porém, os "princípios" do hip hop condicionam opções de vida. Há oito dias, sugeri que o estereótipo de uma identidade que apenas se define pela aversão ao "sistema" derivava do folclore, nem sempre inofensivo, do black power dos anos 1960. Faltou lembrar uma tradição anterior e aparentada, disseminada por brancos interessados em perpetuar, para fins ideológicos, a marginalização dos pretos (o ensaio The White Negro, de Norman Mailer e de 1957, resume e participa de tal "programa"). Enquanto herdeiro desse espírito, o hip hop isola as pessoas da sociedade, para a qual se reserva uma postura de mero confronto que condena os habitantes do gueto, real ou virtual, a uma existência diminuída. Dito de maneira diferente, o preto "autêntico" é o que se remove do "mundo dos brancos" (?). Os outros, os que se esforçam por integrar um universo que o paternalismo manda rejeitar, são os Uncle Remus, os Pais Tomás, os vendidos em suma.
O racismo aqui implícito ganha um twist irónico se repararmos que a "afirmação" identitária associada ao hip hop vem sendo explorada pela indústria em prol de uma audiência maioritariamente branca. É, no entanto, um reparo a evitar: Stephin Merritt, um dos raríssimos talentos em actividade na música pop, afirmou uma ocasião que, no seu confrangedor exibicionismo, a imagem dos "artistas" de hip hop evoca as caricaturas da iconografia esclavagista. Num ápice, meia dúzia de indignados profissionais saltaram a pedir a cabeça de Merritt. Aparentemente, o assunto é delicado em toda a parte.
Por mim, não me aborrece que os cultores do hip hop se ofendam com o meu artigo (pouco original, repito): a opinião é livre. Aborrece--me que certos sujeitos alheios ao tema distorçam o artigo a ponto de concluir que eu tentei "justificar" a morte do sr. Nuno Rodrigues ou, até, que me congratulei com ela. Aí entramos no domínio da velhacaria, inata aos blogues e aos partidos de extrema-esquerda por onde esses sujeitos se arrastam em busca de atenção. E com velhacos não há conversa. Com os demais, duas palavrinhas de esclarecimento: que eu saiba, o sr. Nuno Rodrigues, ou "MC Snake", não fez mal a ninguém excepto, eventualmente, a ele mesmo, ao ceder a um estereótipo que aprofunda a exclusão de que se queixava nas letras que dele li. Ou seja, não foi o hip hop que levou o polícia a disparar (nos tiros somente interveio a estupidez do agente), mas o hip hop talvez tenha levado o sr. Nuno Rodrigues a fugir em primeiro lugar ao polícia."
Alberto Gonçalves
Estas trivialidades despertaram uma pequena sublevação. O site do DN e a Internet em geral encheram-se de comentários destinados a afirmar a minha "intolerância" e a exigir a minha demissão, o degredo ou coisas assim tolerantes. Não percebi porquê. É claro que acho o hip hop uma miséria estética, como acho esteticamente miseráveis uns 95% (contas por baixo) da música popular produzida após 1955 (antes dessa data, o ratio melhora um bocadinho). A diferença está na influência e no crédito que, ao longo de duas ou três décadas, o hip hop adquiriu.
O heavy metal, para usar um exemplo normalmente associado a jovens brancos (ou caras-pálidas, ou caucasianos, ou o que quiserem), é de um primarismo similar, incluindo na celebração da violência (e na misoginia, etc.). Sucede que, ao contrário do hip hop, nem a "criatividade" do heavy metal beneficia de adulação externa ao culto (não conheço académicos empenhados em dissecar o lirismo da banda Nuclear Assault), nem o seu peso (sem trocadilho) ultrapassa círculos restritos.
Já o hip hop marca subúrbios inteiros, não só americanos. E se a popularidade do género alcança as classes médias (pretas e brancas), nestas a sua preponderância é residual ou decorativa. Nos bairros pobres e predominantemente pretos, porém, os "princípios" do hip hop condicionam opções de vida. Há oito dias, sugeri que o estereótipo de uma identidade que apenas se define pela aversão ao "sistema" derivava do folclore, nem sempre inofensivo, do black power dos anos 1960. Faltou lembrar uma tradição anterior e aparentada, disseminada por brancos interessados em perpetuar, para fins ideológicos, a marginalização dos pretos (o ensaio The White Negro, de Norman Mailer e de 1957, resume e participa de tal "programa"). Enquanto herdeiro desse espírito, o hip hop isola as pessoas da sociedade, para a qual se reserva uma postura de mero confronto que condena os habitantes do gueto, real ou virtual, a uma existência diminuída. Dito de maneira diferente, o preto "autêntico" é o que se remove do "mundo dos brancos" (?). Os outros, os que se esforçam por integrar um universo que o paternalismo manda rejeitar, são os Uncle Remus, os Pais Tomás, os vendidos em suma.
O racismo aqui implícito ganha um twist irónico se repararmos que a "afirmação" identitária associada ao hip hop vem sendo explorada pela indústria em prol de uma audiência maioritariamente branca. É, no entanto, um reparo a evitar: Stephin Merritt, um dos raríssimos talentos em actividade na música pop, afirmou uma ocasião que, no seu confrangedor exibicionismo, a imagem dos "artistas" de hip hop evoca as caricaturas da iconografia esclavagista. Num ápice, meia dúzia de indignados profissionais saltaram a pedir a cabeça de Merritt. Aparentemente, o assunto é delicado em toda a parte.
Por mim, não me aborrece que os cultores do hip hop se ofendam com o meu artigo (pouco original, repito): a opinião é livre. Aborrece--me que certos sujeitos alheios ao tema distorçam o artigo a ponto de concluir que eu tentei "justificar" a morte do sr. Nuno Rodrigues ou, até, que me congratulei com ela. Aí entramos no domínio da velhacaria, inata aos blogues e aos partidos de extrema-esquerda por onde esses sujeitos se arrastam em busca de atenção. E com velhacos não há conversa. Com os demais, duas palavrinhas de esclarecimento: que eu saiba, o sr. Nuno Rodrigues, ou "MC Snake", não fez mal a ninguém excepto, eventualmente, a ele mesmo, ao ceder a um estereótipo que aprofunda a exclusão de que se queixava nas letras que dele li. Ou seja, não foi o hip hop que levou o polícia a disparar (nos tiros somente interveio a estupidez do agente), mas o hip hop talvez tenha levado o sr. Nuno Rodrigues a fugir em primeiro lugar ao polícia."
Alberto Gonçalves
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