Vestígios da portugalidade
"Este ano, o Nobel da Física é um bocadinho português", proclama orgulhoso o i em manchete. A sério? E um bocadinho quanto? Metade? Um quarto? Um setenta e dois avos? É fazer as contas. Até lá, a história é que um dos vencedores daquele Nobel, um holandês nascido russo, colaborou em artigos recentes com Nuno Peres, investigador da Universidade do Minho.
Claro que os méritos científicos do dr. Peres não estão em causa e ele não tem culpa nenhuma da nossa saloiice. Claro que i não foi o único jornal a exibir saloiice. Claro que a saloiice é deliciosa.
Nos acidentes e catástrofes, a primeira reacção dos media caseiros é procurar compatriotas entre as vítimas. Nas situações de glória, onde não há hipótese de encontrar portugueses entre os vencedores, resta vasculhar vestígios da portugalidade. Do dentista de Sacavém que uma tarde lanchou com o dr. Barnard ao trisavô açoriano do vencedor do Óscar, passando pelo cão de raça nacional do presidente americano, tudo serve para enaltecer a proximidade dos grandes do mundo ao diminuto Portugal.
Imagino que na Guatemala, digamos na Guatemala, os costumes não difiram muito. Não me admirava que os jornalistas locais também andassem à cata da ocasião em que a vedeta X pernoitou em Guate ou do antigo criado guatemalteco do estadista Y. É possível que a ânsia de identificação e reconhecimento sejam típicas de países periféricos. Mas, se não se importam, é igualmente possível que a ânsia ajude a torná-los periféricos. E isso já é aborrecido.
Em vez de mendigar migalhas de consolação nos prémios que não ganhamos, não seria preferível perceber porque é que os perdemos constantemente? Em vez de esmiuçarmos o DNA das centenas de Nobel alheios, não faríamos melhor em lamentar o facto de os nossos se limitarem a uma distinção ideológica e a uma prática médica caída em desgraça? Em vez de nos preocuparmos com as consagrações, não conviria dedicarmo--nos ao trabalho que aquelas, em princípio, consagram? Em vez de sermos tão portugueses, não ganharíamos em ser outra coisa qualquer, e mais do que um bocadinho? "
Alberto Gonçalves
Claro que os méritos científicos do dr. Peres não estão em causa e ele não tem culpa nenhuma da nossa saloiice. Claro que i não foi o único jornal a exibir saloiice. Claro que a saloiice é deliciosa.
Nos acidentes e catástrofes, a primeira reacção dos media caseiros é procurar compatriotas entre as vítimas. Nas situações de glória, onde não há hipótese de encontrar portugueses entre os vencedores, resta vasculhar vestígios da portugalidade. Do dentista de Sacavém que uma tarde lanchou com o dr. Barnard ao trisavô açoriano do vencedor do Óscar, passando pelo cão de raça nacional do presidente americano, tudo serve para enaltecer a proximidade dos grandes do mundo ao diminuto Portugal.
Imagino que na Guatemala, digamos na Guatemala, os costumes não difiram muito. Não me admirava que os jornalistas locais também andassem à cata da ocasião em que a vedeta X pernoitou em Guate ou do antigo criado guatemalteco do estadista Y. É possível que a ânsia de identificação e reconhecimento sejam típicas de países periféricos. Mas, se não se importam, é igualmente possível que a ânsia ajude a torná-los periféricos. E isso já é aborrecido.
Em vez de mendigar migalhas de consolação nos prémios que não ganhamos, não seria preferível perceber porque é que os perdemos constantemente? Em vez de esmiuçarmos o DNA das centenas de Nobel alheios, não faríamos melhor em lamentar o facto de os nossos se limitarem a uma distinção ideológica e a uma prática médica caída em desgraça? Em vez de nos preocuparmos com as consagrações, não conviria dedicarmo--nos ao trabalho que aquelas, em princípio, consagram? Em vez de sermos tão portugueses, não ganharíamos em ser outra coisa qualquer, e mais do que um bocadinho? "
Alberto Gonçalves
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