Crimes e castigos
"Nem é preciso evocar o "sangue, suor e lágrimas" do velho Winston: os estadistas a sério distinguem-se pela franqueza com que anunciam as más notícias. Os estadistas do género do eng. Sócrates distinguem-se pela cara de pau com que anunciam as boas e disfarçam as péssimas.
Na terça-feira, o primeiro-ministro fez-se acompanhar de um vulto inerte e apareceu nas televisões a enumerar as medidas que não entrarão no plano da troika. Curiosamente, tratava-se das exactas medidas que, aqui há tempos, jurou integrarem a "agenda" do FMI caso o PEC IV fosse rejeitado. Em entrevista (à SIC) de 15 de Março, o eng. Sócrates descreveu o impacto imediato da ajuda externa: "Acabar com o 13.º mês, reduzir o salário mínimo, despedimentos na função pública." Em seguida, questionou: "É isto que queremos?" Era nisso que ele queria que acreditássemos. A 3 de Maio, todo contentinho, o eng. Sócrates informou a nação de que não se acabaria com o 13.º mês (nem com o 14.º). A 5 de Maio, os representantes da troika esclareceram que o fim do 13.º mês (ou do 14.º) nunca esteve em causa. Ainda a 5 de Maio, o ministro Silva Pereira perguntou (retoricamente, espero) a jornalistas de onde viera a ideia dos "cortes" no 13.º mês e no salário mínimo, ao que acrescentou: "Certamente não foi do Governo."
Esta história é exemplar da única competência evidente nos senhores que nos tutelam: o embuste, na convicção, provavelmente razoável, que haverá sempre a quantidade suficiente de eleitores disposta a engoli-lo. Também podíamos falar da promessa do eng. Sócrates de que nunca governaria sob as directivas do FMI (é candidato às "legislativas" de 5 de Junho sob o argumento de que "não foge às responsabilidades"). Ou do modo como se apresentaram as directivas enquanto um mero desenvolvimento do PEC IV (o representante do FMI afirmou não perceber a frase e, horrorizado, explicou que o programa é "mais específico", "mais realista" e, em suma, "diferente"). Ou da tese de que a entrada da troika resultou do "chumbo" do PEC IV (dois delegados da troika explicaram que o atraso no pedido de ajuda agravou a situação e, entre outras coisas, aumentou o desemprego). Ou do orgulho com que se divulgou o ano adicional para correcção do défice (há meses, Passos Coelho pedira-o a Bruxelas e acabou insultado cá dentro). Ou da genérica tentativa de vender o acordo com a "troika" a título de sucesso negocial, quando o acordo, demolidor para as alucinações do governo (das obras públicas às "renováveis"), inevitavelmente acode aos desastres pro- vocados por quem em seis anos contraiu uma dívida pública equivalente à dos 23 anos e não sei quantos governos anteriores.
Perante esta colectânea de falcatruas, a opinião dominante reconhece a habilidade propagandística do eng. Sócrates e recomenda consensos para o futuro. Dois pontos. Primeiro, a propaganda do PS não é grande coisa: o discernimento do público-alvo é que é fraquinho. Segundo, o que nos falta é discórdia em torno do passado. Apesar da "euforia" que o dr. Francisco Assis deseja moderar, o empréstimo concedido pela troika é um embaraçoso, violento e justo atestado de incompetência ao país. Aproveitá-lo sem esmiuçar causas e causadores da sua necessidade é meio caminho andado para voltarmos num ápice ao mesmo ou, conforme agoirou Cavaco Silva, a pior do que ao mesmo.
Se, mal por mal, sonhamos beneficiar a prazo dos apertos que aí vêm, a hora pede a culpa, no mínimo simbólica, dos responsáveis pelos apertos. A alternativa é fiarmo-nos vezes sem conta nas respectivas palavras, sob o pressuposto de que uma mentira doce é preferível a uma pavorosa verdade. A alternativa é sermos portugueses."
Alberto Gonçalves
Na terça-feira, o primeiro-ministro fez-se acompanhar de um vulto inerte e apareceu nas televisões a enumerar as medidas que não entrarão no plano da troika. Curiosamente, tratava-se das exactas medidas que, aqui há tempos, jurou integrarem a "agenda" do FMI caso o PEC IV fosse rejeitado. Em entrevista (à SIC) de 15 de Março, o eng. Sócrates descreveu o impacto imediato da ajuda externa: "Acabar com o 13.º mês, reduzir o salário mínimo, despedimentos na função pública." Em seguida, questionou: "É isto que queremos?" Era nisso que ele queria que acreditássemos. A 3 de Maio, todo contentinho, o eng. Sócrates informou a nação de que não se acabaria com o 13.º mês (nem com o 14.º). A 5 de Maio, os representantes da troika esclareceram que o fim do 13.º mês (ou do 14.º) nunca esteve em causa. Ainda a 5 de Maio, o ministro Silva Pereira perguntou (retoricamente, espero) a jornalistas de onde viera a ideia dos "cortes" no 13.º mês e no salário mínimo, ao que acrescentou: "Certamente não foi do Governo."
Esta história é exemplar da única competência evidente nos senhores que nos tutelam: o embuste, na convicção, provavelmente razoável, que haverá sempre a quantidade suficiente de eleitores disposta a engoli-lo. Também podíamos falar da promessa do eng. Sócrates de que nunca governaria sob as directivas do FMI (é candidato às "legislativas" de 5 de Junho sob o argumento de que "não foge às responsabilidades"). Ou do modo como se apresentaram as directivas enquanto um mero desenvolvimento do PEC IV (o representante do FMI afirmou não perceber a frase e, horrorizado, explicou que o programa é "mais específico", "mais realista" e, em suma, "diferente"). Ou da tese de que a entrada da troika resultou do "chumbo" do PEC IV (dois delegados da troika explicaram que o atraso no pedido de ajuda agravou a situação e, entre outras coisas, aumentou o desemprego). Ou do orgulho com que se divulgou o ano adicional para correcção do défice (há meses, Passos Coelho pedira-o a Bruxelas e acabou insultado cá dentro). Ou da genérica tentativa de vender o acordo com a "troika" a título de sucesso negocial, quando o acordo, demolidor para as alucinações do governo (das obras públicas às "renováveis"), inevitavelmente acode aos desastres pro- vocados por quem em seis anos contraiu uma dívida pública equivalente à dos 23 anos e não sei quantos governos anteriores.
Perante esta colectânea de falcatruas, a opinião dominante reconhece a habilidade propagandística do eng. Sócrates e recomenda consensos para o futuro. Dois pontos. Primeiro, a propaganda do PS não é grande coisa: o discernimento do público-alvo é que é fraquinho. Segundo, o que nos falta é discórdia em torno do passado. Apesar da "euforia" que o dr. Francisco Assis deseja moderar, o empréstimo concedido pela troika é um embaraçoso, violento e justo atestado de incompetência ao país. Aproveitá-lo sem esmiuçar causas e causadores da sua necessidade é meio caminho andado para voltarmos num ápice ao mesmo ou, conforme agoirou Cavaco Silva, a pior do que ao mesmo.
Se, mal por mal, sonhamos beneficiar a prazo dos apertos que aí vêm, a hora pede a culpa, no mínimo simbólica, dos responsáveis pelos apertos. A alternativa é fiarmo-nos vezes sem conta nas respectivas palavras, sob o pressuposto de que uma mentira doce é preferível a uma pavorosa verdade. A alternativa é sermos portugueses."
Alberto Gonçalves
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