quarta-feira, agosto 03, 2011

Estradas sem prioridade

"Alguém dizia não haver pior do que más intenções casadas com competência. Talvez haja: óptimas intenções casadas com a inépcia e amancebadas com a desonestidade. Há uns anos, um emérito grupo de eméritas criaturas horrorizou-se com o estado da dentição dos habitantes de um bairro social do Grande Porto e lançou um projecto, naturalmente subsidiado, para remover os dentes estragados e substitui--los por pivôs novos em folha. A primeira fase foi um saltinho. A segunda fase foi uma queda desembestada no abismo. Quer porque o financiamento não estava devidamente assegurado, quer porque o financiamento se viu devidamente desviado, o projecto terminou a meio do caminho, ou mais exactamente logo após a extracção dos dentes e mesmo antes da colocação dos pivôs. O efeito cómico que, de repente, centenas de pessoas produziam ao tentar falar não compensava o respectivo transtorno.

Como se trata de Portugal, só é de estranhar que situações assim não aconteçam mais vezes. Porém, acontecem as vezes suficientes. Veja-se as estradas com que o eng. Sócrates prometeu "justiça" a Trás-os-Montes. Ele era a A4, que ligaria o litoral Norte a Bragança e depois a Espanha. Ele era o IP2, que ligaria o interior Norte ao interior Sul. Ele era o IC5, que serviria os concelhos do Nordeste ignorados pelas duas maravilhas anteriores. Ele eram 2 mil milhões de investimento. Atribuíram-se concessões, iniciaram-se obras, fizeram-se discursos épicos. À semelhança do episódio odontológico, a coisa ameaça ficar por aqui. O investimento esvaiu-se algures e hoje temos o túnel do Marão suspenso por trapalhadas financeiras, a antiga IP4 esventrada e intransitável, o IP2 atrasado e as construtoras subcontratadas para o IC5 a deixar dívidas nos comerciantes locais e a fugir em seguida.

Na melancólica época anterior à justiça socrática, demorava-se um bocado a chegar mas chegava-se. Agora, entre desvios e gincanas e entulho e um cenário idêntico aos arredores de Cabul, demora-se imenso e quase não se chega. O abandono e umas chuvas garantirão que, um belo dia, não se chegará de todo. Os pessimistas dirão que uma região economicamente isolada arrisca-se ao isolamento físico. Os optimistas dirão que enfim se decidiu combater a desertificação transmontana: como ninguém lá conseguirá entrar, também ninguém de lá conseguirá sair. Excepto rumo à Europa, que desperdiçou fundos em quem não tem dentes
."

Alberto Gonçalves

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