Uma
geração, hoje, traída
Público
2011-10-20 Pedro Lomba
O
meu pai nasceu no dia 18 de Outubro de 1941. Acaba de fazer 70 anos, mais dez
do que Cícero tinha quando escreveu De Senectute. Quando penso na geração dele
e na idade dele, ocorre-me que não houve nada no século XX português que eles
não tivessem visto. A geração do meu pai passou por tudo na rotina frenética
destes 70 anos. Foi uma geração imensamente disponível, batalhadora, dividida,
na ditadura e na democracia, na guerra e na paz, e hoje talvez continue a ser
isso tudo, só que com mais amargura e desencanto.
Quando
o meu pai nasceu em 1941, a Europa tinha mergulhado numa guerra planetária a
que um Salazar de manhosa filigrana nos poupou. Por isso, e pela idade, talvez
não se tenha dado conta lá na província minhota que, quatro anos depois, a
contenda diabólica tinha acabado. Mas lembra-se certamente que na mesma
província as famílias aprendiam cedo o racionamento. A Europa estava em guerra,
o Minho também estava em guerra. Famílias grandes, gigantescas em comparação
com um país onde em cada ano já são mais os mortos do que os nascidos, não
tinham como educar os filhos senão à custa de sorte e improvisação.
O
meu pai, na medida do possível, teve sorte. No Portugal dos anos 40 e 50 era
preciso ter padrinhos mais abonados para estudar. Inteligente, bom aluno, foi o
primeiro da sua família a pôr os pés na faculdade, porque o Estado Novo, embora
expusesse a maioria ao analfabetismo, nunca fechou as portas do ensino aos mais
capazes. Mas esse não era ainda o tempo das licenciaturas ao domingo, do fim do
serviço militar e dos direitos humanos. Quando em 1961 Salazar exclamou Para
Angola rapidamente e em força, o meu pai tinha 20 anos e foi.
A
geração do meu pai foi a geração da guerra de África. Pessoas como o meu pai,
provincianos, rurais, nada sabiam da política, não pensavam no Portugal
multicontinental do regime. Mas estiveram disponíveis quando foram chamados
para as comissões africanas, porque acreditavam em velharias como o dever e a
sobrevivência. Fiéis ao passado, podem ter aprovado a Europa por estarem
convencidos de que viveríamos melhor, mas nunca se tornaram europeístas parolos
e deslumbrados.
Como
quase toda a gente, a geração do meu pai fez a transição do campo para a
cidade, a primeira geração a ocupar os subúrbios das cidades onde as casas eram
comportáveis para quem ganhava a vida no Estado e que, entretanto, se encheram
de comboios populosos e de adolescentes cuja única cultura é a que aprendem na
televisão do big brother. A geração do meu pai resiste aos telemóveis e olha
para a Internet com desconfiança. A geração do meu pai nunca comprou casa
porque nunca teve dinheiro para isso, mas pode gabar-se de não ter contraído
dívidas mastodônticas para os seus filhos e netos.
A
geração do meu pai foi a geração que conheceu a fundo o provérbio chinês: não
serás homem enquanto não conheceres a pobreza, o amor e a guerra. Uma geração
que ainda encarou os filhos como filhos, não como "amigos", mantendo
uma distância emocional que não conseguiu vencer. Uma geração que nunca foi a
mais qualificada de sempre, que não fez carreiras em partidos políticos, que
não teve "mundo", mas nunca perdeu o sentido das proporções. Uma
geração sequestrada pelos grandes debates ideológicos do século. Esta foi a
geração sem a qual não teria existido a democracia, uns porque lutaram por ela,
outros porque foram a bússola de ordem e conservadorismo sem os quais nenhuma
democracia prospera.
Pessoas
como o meu pai tiveram "convicções". Tiveram acima de tudo bom senso.
Tiveram acima de tudo vergonha. Conservadores nos costumes e crentes de que o
Estado deve ajudar os mais desfavorecidos, foram eles os "pais" do
serviço nacional de saúde. Hoje, contemplam com estranheza um mundo de
patos-bravos e oportunistas sanguessugas. Mereciam mais das instituições que
serviram. Mereciam melhor que um país de Armandos Varas e Dias Loureiros.
Mereciam melhor do que um país falido.
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