domingo, abril 08, 2012

"Há dois anos, escrevi aqui sobre o racismo, a misoginia e a violência frequentes nas letras de hip-hop e no modo de vida dos intérpretes de hip-hop. Em consequência, fui agraciado com centenas de comentários online e e-mails que simpaticamente pediam à direcção do DN o meu despedimento ou ameaçavam exterminar-me por via directa. Diversos jornais e personalidades do ramo comentaram indignados o meu reaccionarismo. Um sujeito compôs uma cantiga (digamos) repleta de insultos à minha pessoa e à pessoa da minha mãezinha. Uma associação de rappers angolanos acusou-me de colonialismo ou coisa parecida. Em suma, apenas porque me limitei a constatar um facto, vi-me cercado pelos defensores de uma liberdade de expressão que nunca me passou pela cabeça condicionar. Esta semana, curiosamente, as forças ao serviço da liberdade de expressão moveram céus e terra para cancelar o concerto lisboeta de um cantor de reggae cujas letras, dizem, revelam homofobia. É verdade que inúmeras letras desse subgénero tratam a homossexualidade com escassa delicadeza, de resto uma apetência inscrita em letra de lei na Jamaica, o lugar de origem do subgénero.

Mas o barulho em volta do sr. Sizzla, o cantor em questão, beneficiou de precedentes noutros países europeus onde os seus concertos acabaram de facto cancelados. Em Lisboa, houve concerto (para 300 almas, consta). O verdadeiro espectáculo, porém, esteve a cargo das associações LGBT que protestaram o evento, dos sujeitos reunidos em protesto à porta do Coliseu e, sobretudo, dos esforços da Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC) para silenciar o sr. Sizzla. Segundo o Jornal de Notícias, a sub-inspectora do IGAC Paula Hipólito começou por averiguar a existência de uma entidade pública que impedisse a discriminação sexual. Nada feito: "Percebemos que para a discriminação de género existe uma entidade, mas para a discriminação sexual não há nenhuma." Em seguida, a dona Paula recorreu às entidades judiciais, no caso a procuradora de turno do DIAP, que a informou de que, "de acordo com a lei que temos, obviar ou criar algum obstáculo à realização do espetáculo seria impossível".

Compreensivelmente desalentada, a dona Paula contactou o Comando Metropolitano da PSP de Lisboa para enviar uma brigada ao concerto, a fim de obstar a que o sr. Sizzla incitasse "a plateia à violência ou ao ódio homofóbico". Pelo meio, tentou ainda o recurso desesperado à Comissão para a Igualdade de Género, a qual a informou de que a respectiva "área de intervenção era da discriminação de género e não sexual", e ao Alto Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural, que lamentou não poder dialogar "no caso concreto". Na opinião da dona Paula, o sucedido mostra a necessidade de criar um "mecanismo" para lidar com situações idênticas. Na opinião do contribuinte, o sucedido mostra a quantidade de "mecanismos" parasitas que o apregoado neoliberalismo do Governo mantém vivos. Em qualquer das hipóteses, nada esclarece as dúvidas que me consomem.

Será que o hip-hop goza de um regime de protecção especial? Será que os gays gozam de um regime de protecção especial? Será que a repulsa por um estilo vagamente musical é gravíssimo indício de intolerância enquanto o apelo à censura sumária de vagos músicos constitui um acto de cidadania? Será que a circunstância de me ter pronunciado a título individual me retira a credibilidade que a pertença a grupelhos proibicionistas confere? Será que a susceptibilidade de certas criaturas à ofensa não deveria, em nome da coerência, justificar a eliminação de uns 99,72% dos produtos relativamente artísticos (assim de repente, sobrariam O Principezinho e o Sobe, Sobe, Balão Sobe)? Será que tentar descobrir vestígios de racionalidade num mundo decididamente amalucado não é, em si, sintoma de perturbação? À cautela, já marquei consulta."

Alberto Gonçalves

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