A escola incontrolável.
"A nostalgia conservadora de uma autoridade familiar e escolar – senão mesmo política – estabelecida pela religião e pela tradição não nos serve de muito.
Sou por vezes convidado a ir a escolas fazer pequenas palestras, geralmente inseridas em actividades extracurriculares. Segundo me explicam os professores, o grande problema é reunir um grupo de alunos capazes de manter a disciplina mínima para ouvir uma palestra de 30 ou 40 minutos. Os professores dizem-me logo que, com a maior parte das turmas, isso seria pura e simplesmente impossível. Recentemente, um colega meu da universidade ofereceu-se para ir a uma escola secundária, mas foi recusado com o argumento de que não havia nenhuma turma suficientemente disciplinada para o ouvir.
Fico espantado quando verifico que se discute incessantemente todos os aspectos da educação em Portugal e quase não se fala do problema da indisciplina. Não estou aqui a pensar na simples irreverência própria da idade, nem tampouco em casos isolados de especial agressividade. Isso sempre existiu e existirá. Estou a falar daquela indisciplina quotidiana que impede os professores de serem compreendidos pelos alunos, ou mesmo ouvidos por eles. Estou a falar da indisciplina que faz com que cada aula seja, para o professor, uma espécie de tortura e, para os alunos que querem aprender, uma perda de tempo. Ora, os relatos que ouço em discurso directo levam-me a pensar que muitas escolas portuguesas, e muitas turmas em quase todas as escolas, vivem neste tipo de indisciplina. Esta é uma situação que torna a escola inviável enquanto lugar de aprendizagem de conhecimentos ou de interiorização de valores.
Parece que os professores seriam os primeiros interessados em ter uma escola mais disciplinada. Porque não o conseguem fazer? Em primeiro lugar, os regulamentos e as práticas punitivas não ajudam. O professor que move processos disciplinares confronta-se muitas vezes com a má vontade dos conselhos executivos e das associações de pais. Mesmo quando os processos vão até ao fim, as penas são leves e não dissuadem. A ideia que é transmitida aos professores é a de que mais vale deixar andar. Em segundo lugar, a indisciplina dos jovens vem de casa. Os pais demitiram-se de disciplinar os filhos e passaram essa tarefa para a escola. Ora, a escola existe sobretudo para ensinar e, quando não tem o apoio das famílias, muito dificilmente consegue disciplinar.
Mas as razões mais fundas da incapacidade de pais e professores para disciplinar têm a ver com um ambiente social geral, ao qual nem a família nem a escola escapam. Tanto pais como professores deixaram de se ver como agentes da actividade disciplinadora dos jovens. Os adultos de hoje acham que ”não são polícias”. Pelo contrário, vivem na nostalgia da transgressão que eles próprios protagonizaram – ou idealizaram ter protagonizado – durante a juventude. No nosso ambiente cultural, o comportamento transgressivo associado à juventude é valorizado, enquanto que a actividade disciplinadora dos adultos é mal vista.
Mas de onde vem esta hostilidade à actividade disciplinadora? Alguns dirão que ela é um produto da cultura dos anos 60, mas esse diagnóstico é frouxo porque não explica o triunfo dos valores anti-hierárquicos associados a essa cultura. Num livro recentemente publicado entre nós – ”O Fim da Autoridade” – Alain Renaut vai um pouco mais longe. Segundo Renaut, a incapacidade disciplinadora da família e da escola derivam de uma mudança na relação entre jovens e adultos necessariamente inscrita no devir das sociedades democráticas. Se outro tipo de relações sociais, como entre homens e mulheres, tendem para a igualdade, assim também não podia deixar de acontecer com a relação entre jovens e adultos. A distância entre adultos e jovens, que tornava possível a actividade disciplinadora clássica, deixou de existir. A autoridade de que estavam investidos pais e professores, a admissão do poder natural dos adultos por parte dos jovens, está para sempre perdida.
Renaut não foi, como é óbvio, o primeiro a pensar no assunto. Em meados dos anos cinquenta, Hannah Arendt perguntava ”O que é a autoridade?”, num famoso artigo com igual título. Porém, logo no início do seu texto Arendt modificava os termos do problema para dizer que seria mais correcto perguntar ”o que foi a autoridade?”. Com efeito, o conceito já então lhe parecia tão antigo que não fazia qualquer sentido falar dele usando o tempo presente. O que valia para Arendt vale ainda mais para nós, cerca de meio século depois. A autoridade clássica não é reconstituível no quadro das nossas sociedades democráticas. Por isso é que a nostalgia conservadora de uma autoridade familiar e escolar – senão mesmo política – estabelecida pela religião e pela tradição não nos serve de muito. Se queremos encarar o problema diante de nós, temos de inventar novas formas de autoridade, adaptadas ao espírito democrático e baseadas numa relação contratual que impõe obrigações explícitas a adultos e jovens. Só assim tornaremos a vida possível, nomeadamente nas nossas escolas.
João Cardoso Rosas"
Sou por vezes convidado a ir a escolas fazer pequenas palestras, geralmente inseridas em actividades extracurriculares. Segundo me explicam os professores, o grande problema é reunir um grupo de alunos capazes de manter a disciplina mínima para ouvir uma palestra de 30 ou 40 minutos. Os professores dizem-me logo que, com a maior parte das turmas, isso seria pura e simplesmente impossível. Recentemente, um colega meu da universidade ofereceu-se para ir a uma escola secundária, mas foi recusado com o argumento de que não havia nenhuma turma suficientemente disciplinada para o ouvir.
Fico espantado quando verifico que se discute incessantemente todos os aspectos da educação em Portugal e quase não se fala do problema da indisciplina. Não estou aqui a pensar na simples irreverência própria da idade, nem tampouco em casos isolados de especial agressividade. Isso sempre existiu e existirá. Estou a falar daquela indisciplina quotidiana que impede os professores de serem compreendidos pelos alunos, ou mesmo ouvidos por eles. Estou a falar da indisciplina que faz com que cada aula seja, para o professor, uma espécie de tortura e, para os alunos que querem aprender, uma perda de tempo. Ora, os relatos que ouço em discurso directo levam-me a pensar que muitas escolas portuguesas, e muitas turmas em quase todas as escolas, vivem neste tipo de indisciplina. Esta é uma situação que torna a escola inviável enquanto lugar de aprendizagem de conhecimentos ou de interiorização de valores.
Parece que os professores seriam os primeiros interessados em ter uma escola mais disciplinada. Porque não o conseguem fazer? Em primeiro lugar, os regulamentos e as práticas punitivas não ajudam. O professor que move processos disciplinares confronta-se muitas vezes com a má vontade dos conselhos executivos e das associações de pais. Mesmo quando os processos vão até ao fim, as penas são leves e não dissuadem. A ideia que é transmitida aos professores é a de que mais vale deixar andar. Em segundo lugar, a indisciplina dos jovens vem de casa. Os pais demitiram-se de disciplinar os filhos e passaram essa tarefa para a escola. Ora, a escola existe sobretudo para ensinar e, quando não tem o apoio das famílias, muito dificilmente consegue disciplinar.
Mas as razões mais fundas da incapacidade de pais e professores para disciplinar têm a ver com um ambiente social geral, ao qual nem a família nem a escola escapam. Tanto pais como professores deixaram de se ver como agentes da actividade disciplinadora dos jovens. Os adultos de hoje acham que ”não são polícias”. Pelo contrário, vivem na nostalgia da transgressão que eles próprios protagonizaram – ou idealizaram ter protagonizado – durante a juventude. No nosso ambiente cultural, o comportamento transgressivo associado à juventude é valorizado, enquanto que a actividade disciplinadora dos adultos é mal vista.
Mas de onde vem esta hostilidade à actividade disciplinadora? Alguns dirão que ela é um produto da cultura dos anos 60, mas esse diagnóstico é frouxo porque não explica o triunfo dos valores anti-hierárquicos associados a essa cultura. Num livro recentemente publicado entre nós – ”O Fim da Autoridade” – Alain Renaut vai um pouco mais longe. Segundo Renaut, a incapacidade disciplinadora da família e da escola derivam de uma mudança na relação entre jovens e adultos necessariamente inscrita no devir das sociedades democráticas. Se outro tipo de relações sociais, como entre homens e mulheres, tendem para a igualdade, assim também não podia deixar de acontecer com a relação entre jovens e adultos. A distância entre adultos e jovens, que tornava possível a actividade disciplinadora clássica, deixou de existir. A autoridade de que estavam investidos pais e professores, a admissão do poder natural dos adultos por parte dos jovens, está para sempre perdida.
Renaut não foi, como é óbvio, o primeiro a pensar no assunto. Em meados dos anos cinquenta, Hannah Arendt perguntava ”O que é a autoridade?”, num famoso artigo com igual título. Porém, logo no início do seu texto Arendt modificava os termos do problema para dizer que seria mais correcto perguntar ”o que foi a autoridade?”. Com efeito, o conceito já então lhe parecia tão antigo que não fazia qualquer sentido falar dele usando o tempo presente. O que valia para Arendt vale ainda mais para nós, cerca de meio século depois. A autoridade clássica não é reconstituível no quadro das nossas sociedades democráticas. Por isso é que a nostalgia conservadora de uma autoridade familiar e escolar – senão mesmo política – estabelecida pela religião e pela tradição não nos serve de muito. Se queremos encarar o problema diante de nós, temos de inventar novas formas de autoridade, adaptadas ao espírito democrático e baseadas numa relação contratual que impõe obrigações explícitas a adultos e jovens. Só assim tornaremos a vida possível, nomeadamente nas nossas escolas.
João Cardoso Rosas"
1 Comments:
Very nice site! » » »
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