domingo, outubro 29, 2006

Mentir melhor.

"Apesar do melancólico debate em curso, o Governo não é de esquerda nem de direita: é português. As palavras são do primeiro-ministro: “Claro que mentimos durante o último ano e meio. Era evidente que não estamos a dizer a verdade. Ninguém consegue referir uma medida governamental significativa de que nos possamos orgulhar.” Por acaso, trata-se do primeiro-ministro húngaro, e é por isso que, na Hungria, o levantamento de 1956 tem sido assinalado de forma demasiado literal.

Embora tentadora, a extrapolação para o caso português é abusiva. Não porque o eng. Sócrates não pudesse assinar, com propriedade, a citação acima, mas porque o eng. Sócrates não o fez. E, se o fizesse, dificilmente uma rádio estatal a transmitiria à socapa a fim de excitar as massas, como aconteceu há um mês em Budapeste. O que prova duas coisas: primeiro, que a máquina de propaganda do nosso Governo não é tão permeável; segundo, que o nosso jornalismo público não é tão isento.

Apenas isto justifica que, no último ano e meio (justamente), o PS merecesse a confiança da maioria dos portugueses. A menor virtude do eng. Sócrates foi convencer as pessoas de que o Governo se encontrava empenhado nas reformas necessárias, cuja consumação nos atiraria para uma desmesurada felicidade. A maior virtude do eng. Sócrates consistiu em não desenvolver nenhuma reforma de facto e passar despercebido. Até agora.

Agora, a propaganda abriu brechas e o “descontentamento” tornou-se oficial, o que se nota no recente desnorte dos ministros e na acrescida impaciência do próprio eng. Sócrates. A verdade é que o PS caiu nas sondagens, e não há tantos devotos disponíveis para aceitar o suposto rigor presente em nome da suposta prosperidade futura. De repente, para muitos, os sacrifícios parecem incompreensíveis, e o optimismo patético. De repente, boa parte dos portugueses deixou de acreditar no vendaval de ilusões que garantia o “sucesso” governativo.

E com razão. Removido, com esforço, o barulho dos anúncios, das promessas e das fezadas, o que sobra da alegada determinação política do eng. Sócrates é tristemente pouco, e desgraçadamente habitual. Conforme o Orçamento voltou a demonstrar, salvo por uns vagos “cortes” na Administração Pública (fatalmente conjugados no futuro), o Governo limita a sua acção a um conhecido propósito: assegurar que o contribuinte pague a manutenção de um Estado falido e, se possível, o respectivo crescimento. E nisso, apesar do melancólico debate em curso, o Governo não é de esquerda nem de direita: é português.

Menos portuguesa é a circunstância de o Governo ter começado a tremer por causa de manifestações contrárias às reformas que ainda não realizou e já não irá a tempo de realizar. Na Hungria, o pandemónio também se deve a interesses contraditórios e, com frequência, grotescos. Nenhuma delas, porém, invalida a existência do único défice da UE acima do nosso, de um governo sem “uma medida significativa de que se possa orgulhar” e de um PM que mente mal. O eng. Sócrates, pelos vistos, mente um bocadinho melhor. Mas, como se vê, não o suficiente.
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Alberto Gonçalves

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