Além da esquerda e da direita.
"Fascistas, comunistas, ditadores populistas e misantropos, todos convergem na ideia de que se situam para além da esquerda e da direita.
Há pelo menos quatro modos distintos de se situar “para além da esquerda e da direita”. O mais conhecido é, provavelmente, o modo anti-democrático. Totalitários e autoritários, fascistas e comunistas, ditadores populistas e misantropos, todos convergem na ideia de que se situam para além da esquerda e da direita. Essa ideia é inteiramente compreensível. Esquerda e direita sinalizam a existência de um espaço político plural, protegido pelos direitos e garantias de uma sociedade livre. Onde há pluralismo político existe sempre uma esquerda e uma direita, embora o significado substantivo de uma e da outra variem. Recusar situar-se no eixo democrático esquerda-direita equivale muitas vezes à recusa do irredutível pluralismo de uma sociedade livre e ao correspondente sonho (ou pesadelo) de regresso à sociedade fechada, homogénea, estável e tribal.
O segundo modo pelo qual muitos pretendem situar-se para além da esquerda e da direita é aquilo a que podemos chamar o “modo envergonhado”. Ele é fácil de ilustrar em Portugal. Uma vez que o nosso sistema partidário nasceu à esquerda, os partidos de direita sempre tiveram vergonha de assumir o seu posicionamento político. Note-se que o partido mais à direita na Assembleia de República se intitula partido do “Centro” e que o maior partido da direita tem o nome de “Social Democrata”, uma designação hoje em dia adoptada por antigos partidos comunistas. Entre nós, o “modo envergonhado” continua a ser muito popular entre os agentes políticos. Quando um político diz que a divisão entre a esquerda e a direita já não tem sentido, isso significa que é de direita. No entanto, este “modo envergonhado” de ultrapassar a dicotomia pode, noutras circunstâncias espacio-temporais, revestir formas diferentes. Nos países do Leste da Europa, depois da queda do Muro de Berlim e do colapso do socialismo real, acontecia exactamente o contrário do que se passa entre nós. Ninguém queria ser visto como “de esquerda” e os políticos que declaravam estar ultrapassada a dicotomia esquerda-direita eram, invariavelmente, de esquerda.
Há – e sempre houve – uma terceira forma de estar para além da esquerda e da direita. Consiste ela, simplesmente, em situar-se num qualquer centro. Desde que há esquerda e direita que também há o meio-termo, ou seja, o centro. O centro pode aproximar-se da esquerda numas coisas, da direita noutras. O centro faz uma síntese, ou várias. O centro pode ter designações múltiplas: novo centro, nova via, terceira via, etc. A Terceira Via teorizada por Giddens e incorporada pelo “New Labour” de Blair é uma tentativa recente de teorização do centro. Giddens tentou articular um discurso que juntava o conservadorismo filosófico e o pensamento socialista, para grande proveito eleitoral do “New Labour”. Repercussões directas, mas mais desastradas, da Terceira Via foram o “Novo Centro” de Schröder e “A Nossa Via” de Guterres. No entanto, não é de excluir que tudo isso não tenha passado de “conversa mole” para ganhar eleições. Este ponto conduz-nos ao próximo.
Existe um quarto modo de se situar para além da esquerda e da direita: o “modo retórico”. Ele é especialmente popular em Portugal, onde se mistura com o “modo envergonhado”. As lideranças políticas convenceram-se que, no nosso país, só se ganham eleições apontando ao centro. Por isso os líderes partidários externalizam o discurso ideológico nos pequenos partidos dos extremos e adoptam um discurso meramente de regime, muitas vezes coincidente, pronto a celebrar pactos políticos até sobre matérias técnicas, como as obras públicas. É certo que os grandes partidos de massa tendem sempre à desideologização. No entanto, do meu ponto de vista, o esbater das diferenças doutrinais entre PS e PSD é sobretudo retórico e depende da adaptação das estratégias eleitorais à realidade sociológica portuguesa. Se alguém conseguisse demonstrar aos líderes do PS ou do PSD que, de um ponto de vista eleitoral, mais valia fracturar do que contemporizar (como em Espanha), nenhum deles demoraria muito tempo a perder a vergonha ideológica. Até lá, o nosso discurso político continuará além - ou talvez aquém - da esquerda e da direita."
João Cardoso Rosas
Há pelo menos quatro modos distintos de se situar “para além da esquerda e da direita”. O mais conhecido é, provavelmente, o modo anti-democrático. Totalitários e autoritários, fascistas e comunistas, ditadores populistas e misantropos, todos convergem na ideia de que se situam para além da esquerda e da direita. Essa ideia é inteiramente compreensível. Esquerda e direita sinalizam a existência de um espaço político plural, protegido pelos direitos e garantias de uma sociedade livre. Onde há pluralismo político existe sempre uma esquerda e uma direita, embora o significado substantivo de uma e da outra variem. Recusar situar-se no eixo democrático esquerda-direita equivale muitas vezes à recusa do irredutível pluralismo de uma sociedade livre e ao correspondente sonho (ou pesadelo) de regresso à sociedade fechada, homogénea, estável e tribal.
O segundo modo pelo qual muitos pretendem situar-se para além da esquerda e da direita é aquilo a que podemos chamar o “modo envergonhado”. Ele é fácil de ilustrar em Portugal. Uma vez que o nosso sistema partidário nasceu à esquerda, os partidos de direita sempre tiveram vergonha de assumir o seu posicionamento político. Note-se que o partido mais à direita na Assembleia de República se intitula partido do “Centro” e que o maior partido da direita tem o nome de “Social Democrata”, uma designação hoje em dia adoptada por antigos partidos comunistas. Entre nós, o “modo envergonhado” continua a ser muito popular entre os agentes políticos. Quando um político diz que a divisão entre a esquerda e a direita já não tem sentido, isso significa que é de direita. No entanto, este “modo envergonhado” de ultrapassar a dicotomia pode, noutras circunstâncias espacio-temporais, revestir formas diferentes. Nos países do Leste da Europa, depois da queda do Muro de Berlim e do colapso do socialismo real, acontecia exactamente o contrário do que se passa entre nós. Ninguém queria ser visto como “de esquerda” e os políticos que declaravam estar ultrapassada a dicotomia esquerda-direita eram, invariavelmente, de esquerda.
Há – e sempre houve – uma terceira forma de estar para além da esquerda e da direita. Consiste ela, simplesmente, em situar-se num qualquer centro. Desde que há esquerda e direita que também há o meio-termo, ou seja, o centro. O centro pode aproximar-se da esquerda numas coisas, da direita noutras. O centro faz uma síntese, ou várias. O centro pode ter designações múltiplas: novo centro, nova via, terceira via, etc. A Terceira Via teorizada por Giddens e incorporada pelo “New Labour” de Blair é uma tentativa recente de teorização do centro. Giddens tentou articular um discurso que juntava o conservadorismo filosófico e o pensamento socialista, para grande proveito eleitoral do “New Labour”. Repercussões directas, mas mais desastradas, da Terceira Via foram o “Novo Centro” de Schröder e “A Nossa Via” de Guterres. No entanto, não é de excluir que tudo isso não tenha passado de “conversa mole” para ganhar eleições. Este ponto conduz-nos ao próximo.
Existe um quarto modo de se situar para além da esquerda e da direita: o “modo retórico”. Ele é especialmente popular em Portugal, onde se mistura com o “modo envergonhado”. As lideranças políticas convenceram-se que, no nosso país, só se ganham eleições apontando ao centro. Por isso os líderes partidários externalizam o discurso ideológico nos pequenos partidos dos extremos e adoptam um discurso meramente de regime, muitas vezes coincidente, pronto a celebrar pactos políticos até sobre matérias técnicas, como as obras públicas. É certo que os grandes partidos de massa tendem sempre à desideologização. No entanto, do meu ponto de vista, o esbater das diferenças doutrinais entre PS e PSD é sobretudo retórico e depende da adaptação das estratégias eleitorais à realidade sociológica portuguesa. Se alguém conseguisse demonstrar aos líderes do PS ou do PSD que, de um ponto de vista eleitoral, mais valia fracturar do que contemporizar (como em Espanha), nenhum deles demoraria muito tempo a perder a vergonha ideológica. Até lá, o nosso discurso político continuará além - ou talvez aquém - da esquerda e da direita."
João Cardoso Rosas
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