terça-feira, março 18, 2008

Mitologia

"A privatização e desregulação das últimas décadas foi levada longe demais, com efeitos nefastos para o sistema financeiro.

Como escrevi num texto anterior, uma correcção no mercado imobiliário americano que devolva os preços a um número próximo da sua média histórica resultará em perdas que podem ir até aos oito biliões de dólares, oito triliões na nomenclatura alternativa. Nesta altura, perdas equivalentes na bolsa não podem ser excluídas, culminando num valor superior ao produto anual americano. A consequência imediata será a falência de dois ou três bancos de investimento ou mesmo de um grande banco comercial e o congelamento do consumo privado.

Com a incapacidade dos bancos centrais actuarem sobre a economia, uma incapacidade teorizada há muito mas em que ninguém parecia acreditar, crescem os clamores por um regresso a mercados activamente regulados e mais ou menos contidos dentro de fronteiras nacionais. Triunfa o argumento segundo a qual a privatização e desregulação das últimas décadas foi levada longe demais, com efeitos nefastos para o sistema financeiro.

Queria dizer que esta história está muito mal contada. A desregulação de economia e dos mercados financeiros não começou há trinta anos: é provável que esteja a começar agora. Não preciso de recordar que privatização e desregulação, como tradicionalmente as entendemos, são ideias que seduziram os socialistas franceses na década de oitenta ou os comunistas chineses que hoje as implementam. A regulação continua a existir numa forma diferente mesmo que se tenha desregulado.

A crise financeira contribui para explodir a mitologia, porque a ter uma causa ela deve ser procurada na excessiva regulação dos mercados financeiros: como esperar que o mercado determine novos preços se os bancos e instituições financeiras que compram e vendem estão obrigados por requisitos de capital e regras de transparência contabilística a manter preços artificialmente elevados?

Preços livremente determinados produziriam uma onda de falências. Não estamos a falar de uma religião ou de um país: ninguém sacrifica a vida pelo mercado.

Desviemos o olhar para os lugares onde o poder dos reguladores ainda não chegou. Nos círculos infernais dos fundos de risco elevado impera uma paz relativa, uma paz milagrosa se atendermos à imunidade de que gozam e que os subtrai às mais elementares regras públicas. Foi entre os bancos, os agentes financeiros mais pesademente regulados, que começaram os problemas, entretando agravados para além do razoável. Talvez venhamos a recordar esta crise como o momento em que a indústria bancária se tornou obsoleta, uma profissão de copistas depois da invenção da imprensa.
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Bruno Maçães

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