NA CAMA COM O FISCO
"Nestes tempos de modernidade e eficácia, nem todos os sobrescritos recebidos pelos casais de noivos contêm um cheque com o presente da tia-avó. Alguns levam no interior a prenda da Direcção-Geral de Impostos: um inquérito detalhado acerca dos pormenores materiais da festa de casamento, a responder no prazo de quinze dias sob pena de coima entre os 100 e os 2500 euros. No fundo, é apenas mais uma forma de o Estado coscuvilhar a privacidade alheia e recolher uns trocos. Para nosso bem.
Certamente para meu bem. Detesto convites de casamentos. Detesto, principalmente, convites de casamentos que, em nome da civilidade básica, não posso recusar. Não há muitas torturas piores do que ser transladado durante longas horas para uma tenda no meio de um relvado no meio de um subúrbio qualquer, debaixo de um sol abrasador e rodeado por centenas de criaturas que se intitulam familiares e amigos dos cônjuges. Regra geral, conheço metade dos cônjuges. Regra geral, não conheço mais ninguém, pelo que acabo sujeito à socialização forçada de um grupo de estranhos, que se embaraçam mutuamente numa mesa com o ridículo nome de uma cidade, de um pintor ou de um chakra do ioga. Em suma, olho para o tecto e aborreço-me. De agora em diante, não preciso de me aborrecer.
Só criaturas no limite da subserviência burocrática se prontificarão a fornecer informações do casamento ao Estado sem mentir. Como em quase todas as tentativas de padronização social, é necessário um denunciante isento que ajude a alcançar a verdade. À semelhança de milhares de cidadãos com fobia aos copos de água, estou disposto a desempenhar esse papel de borla. Comparado ao tradicional tédio destas festarolas, o preenchimento de impressos com os custos do fraque, do violoncelista e do marisco é uma distracção vibrante, que me manterá acordado até ao sempre tardio café.
À cautela, e dado que não sei o entendimento que o Estado faz da cerimónia matrimonial, aviso que não estou disponível para seguir os noivos na noite de núpcias. Sentar-me numa cadeirinha a contabilizar o preço da lingerie e adereços afins já excede os meus limites do pudor. Felizmente, não excede o dos funcionários do fisco, que devem ignorar a palavra. Em redor da cama, eles trabalharão com afinco. E se na cama ninguém trabalhar, não há problema: o Governo pode dificultar o casamento, mas anda aflito por facilitar o divórcio."
Alberto Gonçalves
Certamente para meu bem. Detesto convites de casamentos. Detesto, principalmente, convites de casamentos que, em nome da civilidade básica, não posso recusar. Não há muitas torturas piores do que ser transladado durante longas horas para uma tenda no meio de um relvado no meio de um subúrbio qualquer, debaixo de um sol abrasador e rodeado por centenas de criaturas que se intitulam familiares e amigos dos cônjuges. Regra geral, conheço metade dos cônjuges. Regra geral, não conheço mais ninguém, pelo que acabo sujeito à socialização forçada de um grupo de estranhos, que se embaraçam mutuamente numa mesa com o ridículo nome de uma cidade, de um pintor ou de um chakra do ioga. Em suma, olho para o tecto e aborreço-me. De agora em diante, não preciso de me aborrecer.
Só criaturas no limite da subserviência burocrática se prontificarão a fornecer informações do casamento ao Estado sem mentir. Como em quase todas as tentativas de padronização social, é necessário um denunciante isento que ajude a alcançar a verdade. À semelhança de milhares de cidadãos com fobia aos copos de água, estou disposto a desempenhar esse papel de borla. Comparado ao tradicional tédio destas festarolas, o preenchimento de impressos com os custos do fraque, do violoncelista e do marisco é uma distracção vibrante, que me manterá acordado até ao sempre tardio café.
À cautela, e dado que não sei o entendimento que o Estado faz da cerimónia matrimonial, aviso que não estou disponível para seguir os noivos na noite de núpcias. Sentar-me numa cadeirinha a contabilizar o preço da lingerie e adereços afins já excede os meus limites do pudor. Felizmente, não excede o dos funcionários do fisco, que devem ignorar a palavra. Em redor da cama, eles trabalharão com afinco. E se na cama ninguém trabalhar, não há problema: o Governo pode dificultar o casamento, mas anda aflito por facilitar o divórcio."
Alberto Gonçalves
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