COMÉRCIO INJUSTO

"A Liga Operária Católica, o bispo Januário Torgal Ferreira, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista estão contra a abertura dos hipermercados aos domingos e feriados, proibida em 1996 por Frei Guterres. Motivos? A protecção da família. A protecção do "comércio tradicional". A protecção dos trabalhadores. As "nuances" na terminologia das referidas entidades religiosas não perturbam o essencial: a necessidade de salvaguardar o cidadão do monstro capitalista e da sua própria vontade. Se deixado ao cuidado desta e daquele, o cidadão tende a desperdiçar os períodos de lazer no meio de prateleiras apinhadas de iogurtes, em vez de os dedicar à eucaristia ou a manifestações sindicais. Não quero ofender ninguém, mas o cidadão é estúpido.

Num mundo ideal, leia-se um mundo em que a igreja de D. Januário, o Bloco ou o PCP mandassem, as "grandes superfícies" não existiriam e ponto final. O consumo seria realizado em encantadoras lojinhas de bairro, abertas duas horas às terças e quintas e repletas de produtos de quermesses e do "comércio justo", a preços tabelados pelo Estado ou pela Santa Casa.

Desgraçadamente, os tempos correm mal para a espiritualidade, seja de que variante for. Tomadas de inconcebível frenesim, as pessoas desejam adquirir coisas a troco de dinheiro. E de o fazer quando lhes convém. E de deparar com múltiplas escolhas. E de beneficiar dos efeitos da concorrência desenfreada. Apesar do céu que lhes prometem, as pessoas gostam do inferno. Ou de Nova Iorque.

A novidade é que, conforme provado no recente condicionamento alimentar, já nem Nova Iorque é o que era. A fúria materialista, até aqui culpada pelo facto de os países ricos comerem três bifes à conta dos países pobres, é agora culpada pelo facto de os pobres comerem um bife em prejuízo dos ricos, que vêem esfumar-se um terço da dieta. A distribuição desigual de bens e recursos, obra do malvado capitalismo, vai sendo trocada pela nivelação excessiva, obra do capitalismo malvado. Ambas são intoleráveis, com a diferença de que a primeira pesava apenas na consciência, e a segunda ameaça pesar nos hábitos. Pior do que os inúmeros indigentes da Terra, só os inúmeros ex-indigentes. Perfeita seria a indigência de todos, aos domingos, feriados e dias úteis."

Alberto Gonçalves