segunda-feira, maio 12, 2008

Sócrates, Lino & Associados

"Alguém vai ter que fazer a crónica do mediatismo deste período da governação. Terá que ser um trabalho científico como o que o Daniel Boorstin fez sobre os Estados Unidos em 1961 intitulado A Imagem Um guia para os Pseudo-acontecimentos na América. Precisamos em Portugal de um guia para os pseudo-acontecimentos ou caímos no risco de nos resignarmos à vida na zona virtual do Matrix, enquanto em silêncio as agências de comunicação e imagem nos sugam o que nos resta de discernimento e, exangues, passamos a confundir tudo. Realidade com ficção, o projecto com o concreto, a verdade com a mentira. No dia 28 de Abril às 10 da manhã Daniel Boorstin teria tido material para um livro com a "inauguração" do projecto Nova Alcântara na zona ribeirinha de Lisboa.

Foi apresentado na magnífica gare portuária de Alcântara entre os ecos que ficaram dos que, em décadas passadas, foram passageiros forçados do Paquete Niassa rumo à batalha em defesa de um patriotismo, também esse virtual, ante os olhares sempre surpreendidos e atónitos dos traços únicos de Almada Negreiros. Há uma tradição de embuste naquele histórico espaço, que foi uma vez mais cumprida como se de maldição se tratasse. O Primeiro-ministro convocou os media para um invulgar espectáculo de luz e som numa combinação única de PowerPoint, banda desenha, animação tridimensional e transmissões em directo para anunciar que o comboio vai passar por ali em quantidades e velocidades nunca vistas. Vão ser feitos túneis onde não devem ser feitos túneis, como o atestam os milhões de Euros nas obras do Metro no Terreiro do Paço. Mas isso no mundo virtual pouco conta. Todos nós vimos nos ecrãs de TV comboios a circular silenciosamente por subterrâneos com gente a entrar e a sair roboticamente de composições tão futuristas como as da Disneylandia.

E vimos tudo com estes olhos que a terra há-de engolir, do mesmo modo que Sócrates, Lino & Associados pretendem que aconteça com a linha de Cascais. E depois houve o toque de mestre. No meio da apresentação de Sócrates começou uma transmissão em directo do ramal da CP que atravessa a Avenida da Índia e uma longa composição de vagões descarregados e locomotivas diesel-eléctricas fez um lento desfile de equipamento ferroviário a meio da manhã num dia de semana e causou o monumental engarrafamento que legitimaria a construção de todos túneis. Contactei com a CP para saber os horários de utilização deste ramal. Não há horas certas. É utilizado sobretudo à noite, disseram-me (porque há menos trânsito). Por vezes à tarde. Muito raramente de manhã. Que coincidência ter havido uma passagem logo naquela manhã. Que sorte para a apresentação de Sócrates & Lino poderem ilustrar com um exemplo Live from Lisbon os seus devaneios para o futuro da Capital.

O extraordinário é que a coisa pegou. No fim da apresentação Ana Paula Vitorino, Secretaria de Estado, discutia já com repórteres a importância que estava a ser dada às águas do Caneiro de Alcântara. Tinha-se passado do virtual para o pseudo-acontecimento de Boorstin. De um PowerPoint para uma discussão pseudo-concreta sobre pseudo problemas técnicos de uma obra que não foi discutida nem aprovada nem projectada nem orçamentada e que, no entanto, foi servida nos prime time noticiosos da noite de 28 de Abril deixando-nos a sensação que fazia falta aparecer Joe Berardo a dizer 'Hello?!!? Mas isto não existe!' Joe Berardo não apareceu, mas António Costa, a quem obviamente competia apresentar tal projecto no seu município e não foi a Alcântara, disse que a sua Câmara desconhecia tudo. Isto traduzido equivale a 'Hello!?!'. Anteontem foram os computadores apresentados por figurantes pagos. Ontem a baralhada entre comboios subterrâneos no lodo do cais de Alcântara e engarrafamentos à superfície. Que aventura nos reservará para amanhã a Play-station do governo?
"

Mário Crespo

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