A arte de separar
"A proximidade física entre grupos com uma identidade étnica própria é mais uma fonte de problemas do que um caminho de solução.
Tem vingado nas últimas décadas – entre nós, mas não só – a teoria do espaço urbano multicultural e mesclado. As cidades do futuro, dizem-nos os proponentes desta visão, serão uma mistura de povos e culturas, trocando experiências e enriquecendo-se mutuamente. O planeamento das cidades deveria propiciar estas trocas e desenvolver as suas potencialidades. Em tese, a ideia parece-me atractiva. Mas, infelizmente, não funciona na prática.
Ela não funcionou nos Estados Unidos e noutras sociedades de imigrantes. Aí as diferentes comunidades foram-se organizando segundo linhas étnicas mais ou menos definidas. Assim surgiram os bairros chineses, japoneses, italianos, hispânicos, portugueses, etc. Até os afro-americanos continuam a viver em bairros separados, com a diferença de que hoje existe também uma classe média e alta de origem africana e que tem os seus bairros próprios, onde não se mistura nem com os brancos, nem com os negros pobres. À clivagem étnica sobrepôs-se ainda a clivagem social.
Mas a teoria do ‘mélange’ cultural urbano também não funcionou nas sociedades tradicionais da Europa. Nos países que tiveram uma imigração forte desde o pós-guerra, os autóctones foram paulatinamente fugindo dos bairros tomados pela imigração. As diferentes comunidades foram marcando o seu espaço. Foi assim na Holanda, no Reino Unido, em França, etc. Os problemas foram surgindo – e continuarão a surgir – quando duas ou mais comunidades têm de partilhar o mesmo bairro.
É curioso notar que esta tendência mantém-se independentemente das políticas estatais em relação às minorias, ou até da ausência dessas políticas. Nos Estados Unidos, durante a maior parte do tempo, a separação das comunidades deu-se sem grande intervenção estatal. Na Europa, foram seguidas duas vias distintas. Alguns países, como a Holanda e o Reino Unido, aplicaram as chamadas políticas da diferença multiculturalista para proteger – e assim melhor integrar – as minorias. Noutros países, como em França, a política foi e continua a ser a da assimilação das comunidades imigrantes aos valores comuns da República. Mas, em todos os casos, na ausência de políticas estatais, nas políticas da diferença, ou nas políticas da assimilação, o resultado parece ser o mesmo: uma tendência espontânea para a separação espacial e o surgimento de conflitos, por vezes explosivos, quando ela não é realizada.
É claro que as questões que se colocam entre nós são algo diferentes porque os grupos com que lidamos – ciganos, africanos de diversas origens, brasileiros, ucranianos, etc. – são também diferentes. Por exemplo, os grupos de religião islâmica entre nós são minoritários e essa diferença não é desprezível. Mas também não devemos exagerar aquilo que nos separa das outras sociedades, sobretudo na Europa. Mais cedo ou mais tarde, os problemas deles acabam por ser os nossos problemas.
Por isso já é mais do que tempo de parar para pensar. Em vez de nos guiarmos pela teoria desacreditada do espaço urbano multicultural e mesclado, deveríamos considerar aquilo a que se pode chamar a “arte da separação” (a expressão é do filósofo Michael Walzer). Em sociedades extremamente plurais, nas quais a diversidade étnica se cruza com outras diversidades (de comportamentos, de gostos, etc.), a separação dos espaços das cidades permite a manutenção da paz e abre a possibilidade da tolerância.
A proximidade física entre grupos com uma identidade étnica própria é mais uma fonte de problemas do que um caminho de solução. A tolerância torna-se difícil quando se tem de conviver no dia-a-dia com aquilo de que não se gosta. Mutatis mutandis, é muito mais fácil tolerar o outro quando ele mora a uma certa distância, talvez no bairro ao lado, em vez de viver na porta do lado.
A arte da separação não impede a existência de um forum onde todos possam estar, de alguns bairros onde a mistura cultural funcione (provavelmente, os mais interessantes), nem a circulação entre os espaços diferenciados da cidade. Mas também não embarca na utopia do convívio fácil entre o que é diferente, ou na expectativa absurda de um ‘melting pot’ milagroso. A arte de separar reconhece a diferença, mas constrói ao mesmo tempo as condições objectivas para a tolerância."
João Cardoso Rosas
Tem vingado nas últimas décadas – entre nós, mas não só – a teoria do espaço urbano multicultural e mesclado. As cidades do futuro, dizem-nos os proponentes desta visão, serão uma mistura de povos e culturas, trocando experiências e enriquecendo-se mutuamente. O planeamento das cidades deveria propiciar estas trocas e desenvolver as suas potencialidades. Em tese, a ideia parece-me atractiva. Mas, infelizmente, não funciona na prática.
Ela não funcionou nos Estados Unidos e noutras sociedades de imigrantes. Aí as diferentes comunidades foram-se organizando segundo linhas étnicas mais ou menos definidas. Assim surgiram os bairros chineses, japoneses, italianos, hispânicos, portugueses, etc. Até os afro-americanos continuam a viver em bairros separados, com a diferença de que hoje existe também uma classe média e alta de origem africana e que tem os seus bairros próprios, onde não se mistura nem com os brancos, nem com os negros pobres. À clivagem étnica sobrepôs-se ainda a clivagem social.
Mas a teoria do ‘mélange’ cultural urbano também não funcionou nas sociedades tradicionais da Europa. Nos países que tiveram uma imigração forte desde o pós-guerra, os autóctones foram paulatinamente fugindo dos bairros tomados pela imigração. As diferentes comunidades foram marcando o seu espaço. Foi assim na Holanda, no Reino Unido, em França, etc. Os problemas foram surgindo – e continuarão a surgir – quando duas ou mais comunidades têm de partilhar o mesmo bairro.
É curioso notar que esta tendência mantém-se independentemente das políticas estatais em relação às minorias, ou até da ausência dessas políticas. Nos Estados Unidos, durante a maior parte do tempo, a separação das comunidades deu-se sem grande intervenção estatal. Na Europa, foram seguidas duas vias distintas. Alguns países, como a Holanda e o Reino Unido, aplicaram as chamadas políticas da diferença multiculturalista para proteger – e assim melhor integrar – as minorias. Noutros países, como em França, a política foi e continua a ser a da assimilação das comunidades imigrantes aos valores comuns da República. Mas, em todos os casos, na ausência de políticas estatais, nas políticas da diferença, ou nas políticas da assimilação, o resultado parece ser o mesmo: uma tendência espontânea para a separação espacial e o surgimento de conflitos, por vezes explosivos, quando ela não é realizada.
É claro que as questões que se colocam entre nós são algo diferentes porque os grupos com que lidamos – ciganos, africanos de diversas origens, brasileiros, ucranianos, etc. – são também diferentes. Por exemplo, os grupos de religião islâmica entre nós são minoritários e essa diferença não é desprezível. Mas também não devemos exagerar aquilo que nos separa das outras sociedades, sobretudo na Europa. Mais cedo ou mais tarde, os problemas deles acabam por ser os nossos problemas.
Por isso já é mais do que tempo de parar para pensar. Em vez de nos guiarmos pela teoria desacreditada do espaço urbano multicultural e mesclado, deveríamos considerar aquilo a que se pode chamar a “arte da separação” (a expressão é do filósofo Michael Walzer). Em sociedades extremamente plurais, nas quais a diversidade étnica se cruza com outras diversidades (de comportamentos, de gostos, etc.), a separação dos espaços das cidades permite a manutenção da paz e abre a possibilidade da tolerância.
A proximidade física entre grupos com uma identidade étnica própria é mais uma fonte de problemas do que um caminho de solução. A tolerância torna-se difícil quando se tem de conviver no dia-a-dia com aquilo de que não se gosta. Mutatis mutandis, é muito mais fácil tolerar o outro quando ele mora a uma certa distância, talvez no bairro ao lado, em vez de viver na porta do lado.
A arte da separação não impede a existência de um forum onde todos possam estar, de alguns bairros onde a mistura cultural funcione (provavelmente, os mais interessantes), nem a circulação entre os espaços diferenciados da cidade. Mas também não embarca na utopia do convívio fácil entre o que é diferente, ou na expectativa absurda de um ‘melting pot’ milagroso. A arte de separar reconhece a diferença, mas constrói ao mesmo tempo as condições objectivas para a tolerância."
João Cardoso Rosas
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