sábado, agosto 09, 2008

Da esquerda

"A esquerda sempre se confrontou com um desafio a que nunca foi capaz de responder cabalmente: o desafio de assumir uma ideia complexa de natureza humana. Por uma razão essencial: esta ideia era considerada incompatível com a dinâmica transformadora do processo histórico-social. Porque a esquerda sempre viu o processo humano como processo histórico-social, onde a componente natural ocupava sempre uma posição puramente subalterna ou mesmo residual. Outra coisa era atribuir-lhe leis de desenvolvimento de tipo determinístico, como viria a fazer o marxismo ortodoxo. Se tivesse de falar de natureza humana a esquerda clássica diria sempre que ela é o resultado de um processo, não estando, pois, predeterminada. Os existencialistas traduziram esta ideia através daquela conhecida fórmula de que “a existência precede a essência”. E, antes, creio, Gramsci traduziu-a por aquela outra feliz expressão de que o homem é aquilo em que se torna (‘è ciò che diventa’). Mas a verdade é que há, em Marx, páginas muito interessantes, nos “Manuscritos de 1844”, onde a dimensão natural da vida em comunidade é muito valorizada e onde a natureza é considerada como “corpo inorgânico do homem”. De qualquer modo, a ideia de que existem no ser humano determinadas características estruturais comuns que, na sua aleatoriedade, tendem a manifestar-se recorrentemente na vida em sociedade, sendo recondutíveis aos próprios indivíduos singulares, nunca foi muito acarinhada conceptualmente pela esquerda. As características comuns, naturais e morais, eram tendencialmente distribuídas por classes sociais, tendo, depois, uma sua expressão política. A ideia genérica de que o “homem é o lobo do homem” (’homo hominis lupus’), na visão da esquerda clássica tem uma concreta tradução de classe: o lobo e o homem representam classes antagónicas. A natureza humana, que aqui surge como aleatória e transversal a todos os indivíduos, na lógica da esquerda fracturava-se em função das classes. Se, no utilitarismo, a pulsão egoísta orientada para o útil podia converter-se em benefício colectivo, à esquerda este só podia ser obtido por intervenção da “razão pública”.

A esquerda sempre acreditou na força criativa da sociedade contra os determinismos conservadores que habitualmente legitimam a ordem vigente. Sempre acreditou na ideia de um progresso contínuo. Esta crença no valor taumatúrgico da dinâmica social levou-a, contudo, a desvalorizar a força das pulsões estruturais que sempre persistem e condicionam o processo social, para além do princípio da razão. Lá onde a esquerda tem procurado usar a razão para canalizar um processo histórico-social considerado progressivo, muitas vezes tem esquecido o papel resistente dessas pulsões estruturais que também condicionam o curso histórico.
Alguém dizia que a ideologia é eterna e que, mesmo quando parece que morre, sempre há-de ressurgir de novo vigorosa em tempos futuros. Também Jürgen Habermas, recentemente, nos chamados seminários de Istambul, parece ter revalorizado o papel das religiões nas chamadas sociedades pós-seculares. Ou seja, de algo que a esquerda sempre tendeu a remeter para o domínio da pura alienação, não admitindo que essa possa ser uma componente estrutural da natureza humana, ligada à ideia de finitude, necessária e sofrida. Mas é claro que a esquerda muito ganharia em compreensão do mundo se incorporasse estes dados rejeitados na sua rede conceptual e procurasse integrá-los numa lógica racional superior, sem qualquer veleidade construtivista, projectando esse “corpo inorgânico”, de que falava Marx, sem o esmagar com a força do voluntarismo ético. Toda esta lógica está, afinal, envolvida por um voluntarismo moral (“ética da convicção”) que dificulta o reconhecimento das reais fracturas sociais e, por isso, uma sua correcta interpretação e superação. Na verdade, o reconhecimento de que as sociedades humanas estão também elas condicionadas por determinismos de tipo estrutural torna-se decisivo. Até porque ele é condição necessária de alguns dos valores mais importantes das democracias modernas: a tolerância e o respeito recíproco, o realismo político e o compromisso, a liberdade responsável. É neste reconhecimento que reside a capacidade de progredir de forma sustentada, reconduzindo o exercício da vontade política ao equilíbrio social.

Conjugando optimismo da vontade com pessimismo da razão, num quadro onde a ética se funde com a política
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João de Almeida Santos

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