sexta-feira, setembro 05, 2008

Distinções liberais

"Galston e Sandel exemplificam uma das mais interessantes correntes do pensamento liberal contemporâneo.

Na semana passada, Pedro Lomba ofereceu nestas mesmas páginas uma reflexão sobre a variabilidade do que significa ser liberal. Ele acertou ao frisar que o liberalismo é a corrente ideológica mais viva hoje em dia – por contraposição, quer ao socialismo, quer ao conservadorismo –, assim como em chamar a atenção para a grande diversidade interna do pensamento e da prática do liberalismo. Mas o essencial do seu texto incidia sobre uma divisão entre dois tipos de liberalismo: normativo e social.

O liberalismo normativo consistiria em acentuar a legalidade liberal – a defesa estrita das liberdades individuais – contra a legalidade conservadora ou a legalidade social. Neste liberalismo normativo caberiam tanto a defesa liberal do mercado (e.g.,Hayek), como o pensamento dos libertaristas americanos (suponho que Pedro Lomba estaria a pensar, por exemplo, em Nozick). Esta categorização levanta-me dois problemas.

Em primeiro lugar, parece-me um pouco artificial colocar no mesmo saco, por assim dizer, o liberalismo clássico dos economistas e o liberalismo moral de Nozick e outros. O primeiro parte da defesa do mercado como “ordem espontânea”, enquanto o segundo assenta na ideia – que tem origem em Locke – de que cada indivíduo é proprietário de si mesmo. Embora algumas das conclusões destes dois liberalismos possam ser aproximadas, eles são filosoficamente muito distintos.

Em segundo lugar – e muito mais importante –, não vejo por que razão o liberalismo de Hayek e Nozick deva ser considerado especialmente normativo. Com certeza que tanto um autor como o outro são a favor do primado da lei num Estado mínimo, ou próximo disso. No entanto, ambos são contra a legislação feita com o intuito de criar uma ordem social fabricada, ou um Estado muito mais extenso do que o Estado mínimo. Dessa forma, eles opõem-se a qualquer corrente que seja excessivamente normativa, quer com vista à implantação de um Estado social (como no caso da esquerda socialista, social-democrata ou liberal-igualitária), quer com o objectivo de interferir nos actos e contratos individuais que não causam prejuízo a terceiros (como no caso da direita conservadora). A estratégia deste liberalismo não consiste em impor uma normatividade liberal, mas antes em remover a normatividade conservadora ou socialista. Trata-se, portanto, de uma estratégia de desregulamentação, tanto na economia como na vida privada dos indivíduos.

Segundo Pedro Lomba, o liberalismo social, por contraposição ao normativo, assentaria numa filosofia moral sobre a natureza humana e teria especialmente em atenção o aspecto relacional dos indivíduos, estudado pela psicologia e pela sociologia. Não é muito claro quem teria o cronista em mente como autores exemplificativos deste modo de pensar. Mas julgo possível associar as fórmulas que ele utiliza ao “liberalismo perfeccionista” – assim chamado porque associa a defesa do liberalismo a um ideal da vida boa em sociedade – de autores como Galston, ou até mesmo Sandel (embora este seja um pouco mais comunitarista que o anterior).

Os dois autores referidos exemplificam uma das mais interessantes correntes do pensamento liberal contemporâneo. Mas não percebo por que razão haveríamos de chamar ao liberalismo desta corrente “social”, por contraposição a “normativo”. O que acontece é que este liberalismo, precisamente porque associa a ordem liberal a uma concepção moral e a uma visão específica do bem da vida humana, é muito mais normativo do que o liberalismo de Hayek, Nozick, ou outros.

Recordo que a divisão entre liberalismo normativo e liberalismo social introduzida por Pedro Lomba vinha a propósito do veto presidencial à nova lei do divórcio. Segundo o cronista, aqueles que ele designa por liberais normativos não aceitariam de bom grado esse veto, enquanto que os liberais sociais poderiam compreendê-lo e apoiá-lo. Isso é verdade, mas não pelas razões aduzidas pelo cronista.

Aquilo que Pedro Lomba designa por liberalismo social é muito mais normativo do que o que ele designa por liberalismo normativo. E é por isso mesmo que autores como Sandel ou Galston poderiam, coerentemente, apoiar o veto presidencial, enquanto que o mesmo dificilmente poderia ocorrer nos casos de Hayek ou Nozick
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João Cardoso Rosas

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