quarta-feira, outubro 15, 2008

Excesso ético

"A causa desta crise é a nossa incapacidade de aceitar os mecanismos de que depende o funcionamento de uma sociedade moderna.

Há uma semana, em Georgetown, Alan Greenspan expôs assim a sua grande teoria da crise: o sistema de mercado só funciona se estiver apoiado na confiança e reputação, dois bens que lamentavelmente deixámos erodir na última década. A crise seria, pois, uma crise social e cultural, uma crise ética, mais do que uma crise económica. Greenspan, a eminência parda do mercado livre, tenta desviar as atenções dos políticos para a cultura e os valores, não se dê o caso de eles quererem refundar a economia segundo os seus planos imaginários.

Começo com Greenspan porque a minha opinião é exactamente a oposta. A grande explicação histórica da crise internacional, tão europeia como americana, deve ser procurada no modo como progressivamente fomos perdendo o estômago para o tipo de motivos e razões nos quais se apoia uma sociedade e economia modernas. Como alguém disse, o capitalismo não depende da benevolência do talhante ou do padeiro. Não se apoia em bons motivos e um bom coração, mas sim num sistema impessoal de teste, sucesso, fracasso, destruição e criatividade.

Pois bem, o problema é que permitimos que uma exigência de confiança e diálogo entre pessoas fosse penetrando nos mecanismos impessoais do mercado, em muitos casos afectando profundamente o seu funcionamento. Isto é uma consequência do que vulgarmente se chama o aprofundamento da democracia, a subordinação da sociedade aos valores da democracia. Um exemplo óbvio é a corrupção generalizada da actividade de notação. O fenómeno já o conhecemos muito bem das universidades: a inflação de notas. O pior lixo hipotecário conseguia há dois e três anos receber notas máximas das empresas de notação, precisamente porque foram postas em prática regras de colaboração que substituíram a crítica externa e o interesse próprio por processos de diálogo e confiança. Nas universidades a inflação de notas tem consequências insidiosas sobre a qualidade do ensino. Nos mercados financeiros é a própria estabilidade e sobrevivência do sistema que são postas em causa.

Há muitos outros exemplos desta tendência para, pelos melhores motivos, impor práticas democráticas onde apenas os mecanismos do mercado podem funcionar. Nos próximos textos procurarei examinar esses exemplos com algum cuidado. Por agora quero concluir com uma nota do pessimismo mais radical: se a causa desta crise é, como creio, a nossa incapacidade de aceitar os mecanismos de que depende o funcionamento de uma sociedade moderna, a violência com que continuaremos a sabotar o nosso próprio modo de vida só pode concebivelmente aumentar
."

Bruno Maçães

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