Pobres e desonrados.
"A propósito dos "incidentes" no bairro da Bela Vista, isto é, dos ataques a polícias pérfidos e a automóveis provocadores, o inevitável ex-bispo de Setúbal inevitavelmente culpou a "economia selvagem" e pediu a caridosa intervenção estatal. O apelo é extraordinário: por um lado, porque foi o Estado "social" e não o capitalismo que ergueu os guetos desta história; por outro, porque, para quem é considerado uma espécie de "voz dos pobres", D. Manuel Martins não tem os pobres em grande conta.
Aparentemente, na respeitadíssima opinião do clérigo, qualquer indivíduo sem emprego certo nem dinheiro abundante está a meio passo de adquirir uma arma, aderir a uma quadrilha de malfeitores e roubar, com particular violência, bancos, carros, estabelecimentos comerciais e transeuntes. Um pobre é, portanto, um potencial ladrão e, se calhar, um potencial homicida.
Talvez as estatísticas concedam a D. Manuel Martins uma parcela da razão. Porém, uma tendência quantitativa está longe de reflectir a realidade de inúmeros desafortunados que, apesar das dificuldades, fazem por uma vida honesta e digna. Dado que, à semelhança dos portugueses em geral, os pobres não são números mas pessoas, parece-me razoável poupar estas à comparação fácil com simples criminosos. Falo, por exemplo, dos moradores da Bela Vista que, criados nas mesmas condições dos criminosos, não ameaçam dedicar-se à extorsão ou à destruição de propriedade alheia (nalguns casos, pelo contrário, são o seu alvo).
Tal como os (brutais) 28% de desempregados na Bela Vista não devem anular os 72% que trabalham e mais uns tantos que tentam trabalhar, o bom senso basta para se perceber que a condição não é, obrigatoriamente, destino. Por azar, não existe senso que prospere nas cabeças que, por tique ou convicção, desataram a glosar as palavras de D. Manuel Martins e a desbravar caminhos no cliché do "contexto". De acordo com a tese do "contexto", corruptela do proverbial padre Américo, não há rapazes maus - dentro dos bairros. Se há ali rapazes empenhados em subtrair pela força caixas multibanco das paredes e carros dos donos, a maldade chega de fora e é todinha nossa: da civilização, do regime, do Estado, do Governo, da imprensa, da sociedade, minha e sua.
Não admira que estes campeões da "solidariedade" retórica não distingam entre sujeitos decentes e delinquentes. No fundo, e à semelhança da direita reaccionária que dizem combater, para eles os pobres não seres humanos, dotados de vontade própria e, dentro do possível, de livre arbítrio: são ideais, protótipos, conceitos que servem a parlapatice ideológica e a luta política. São, em suma, todos iguais e, se deixados à solta, do Estado ou da cadeia, não vão a lado nenhum.
Com superior sofisticação, o velhinho Marx incorreu em erro idêntico, e as consequências foram lendárias. As consequências, porém, não evitaram que o erro fosse, até hoje, sucessivamente repetido, primeiro como tragédia, depois como farsa e finalmente como anedota, embora não dê vontade de rir. "
Alberto Gonçalves
Aparentemente, na respeitadíssima opinião do clérigo, qualquer indivíduo sem emprego certo nem dinheiro abundante está a meio passo de adquirir uma arma, aderir a uma quadrilha de malfeitores e roubar, com particular violência, bancos, carros, estabelecimentos comerciais e transeuntes. Um pobre é, portanto, um potencial ladrão e, se calhar, um potencial homicida.
Talvez as estatísticas concedam a D. Manuel Martins uma parcela da razão. Porém, uma tendência quantitativa está longe de reflectir a realidade de inúmeros desafortunados que, apesar das dificuldades, fazem por uma vida honesta e digna. Dado que, à semelhança dos portugueses em geral, os pobres não são números mas pessoas, parece-me razoável poupar estas à comparação fácil com simples criminosos. Falo, por exemplo, dos moradores da Bela Vista que, criados nas mesmas condições dos criminosos, não ameaçam dedicar-se à extorsão ou à destruição de propriedade alheia (nalguns casos, pelo contrário, são o seu alvo).
Tal como os (brutais) 28% de desempregados na Bela Vista não devem anular os 72% que trabalham e mais uns tantos que tentam trabalhar, o bom senso basta para se perceber que a condição não é, obrigatoriamente, destino. Por azar, não existe senso que prospere nas cabeças que, por tique ou convicção, desataram a glosar as palavras de D. Manuel Martins e a desbravar caminhos no cliché do "contexto". De acordo com a tese do "contexto", corruptela do proverbial padre Américo, não há rapazes maus - dentro dos bairros. Se há ali rapazes empenhados em subtrair pela força caixas multibanco das paredes e carros dos donos, a maldade chega de fora e é todinha nossa: da civilização, do regime, do Estado, do Governo, da imprensa, da sociedade, minha e sua.
Não admira que estes campeões da "solidariedade" retórica não distingam entre sujeitos decentes e delinquentes. No fundo, e à semelhança da direita reaccionária que dizem combater, para eles os pobres não seres humanos, dotados de vontade própria e, dentro do possível, de livre arbítrio: são ideais, protótipos, conceitos que servem a parlapatice ideológica e a luta política. São, em suma, todos iguais e, se deixados à solta, do Estado ou da cadeia, não vão a lado nenhum.
Com superior sofisticação, o velhinho Marx incorreu em erro idêntico, e as consequências foram lendárias. As consequências, porém, não evitaram que o erro fosse, até hoje, sucessivamente repetido, primeiro como tragédia, depois como farsa e finalmente como anedota, embora não dê vontade de rir. "
Alberto Gonçalves
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