O evangelho segundo Saramago
"As fotografias de Berlusconi junto de umas jovens em trajes reduzidos e um senhor em pelota, divulgadas pelo seríssimo El País, inspiraram José Saramago a publicar, também no El País, uma prosa amarga ("A coisa Berlusconi") em que chama ao primeiro-ministro italiano "vírus", "doença", "delinquente", um traidor da herança de Verdi que, o que pelos vistos é ainda pior, "organiza orgias" e "acompanha menores".
Se é dúbia a referência a Verdi, cujas óperas mais célebres denunciam justamente a dissimulação com que a sociedade condena as relações amorosas entre os poderosos e os simples, percebe-se perfeitamente a origem do moralismo que transborda da prosa. Não se passa uma vida a venerar Estaline e a militar no PCP em vão. Subsidiária dos mandamentos soviéticos, a filial caseira aplicou aos respectivos fiéis um código de conduta "familiar" profundamente conservador, capaz de traduzir na intimidade a "superioridade moral" que possuíam na vida pública. Não importa aqui a hipocrisia e a falibilidade do exercício, nem as liberdades sexuais dos anos sessenta, que contaminaram a pureza dos camaradas jovens: o mundo teórico de Saramago (o prático ignoro) sedimentou-se nas décadas anteriores, e desde então ele dedica à "decadência burguesa" o horror das almas castas.
Há nisto muito de bíblico, embora em interpretação literal e tom de sacristia. O sermão do Nobel em nada se distingue da ira "regeneradora" de evangélicos cristãos e mullahs islâmicos, na medida em que exemplifica um padrão de pensamento totalitário e relembra de que modo os beatos se apropriaram da dimensão religiosa do marxismo. Para os beatos, a observância da fé é o único critério que define um indivíduo e o distingue das hordas de pecadores sem tino que se entregam às tentações terrenas. Obviamente, não é Berlusconi a "coisa", e se o processo de desumanização comunista, que Saramago exibe como um museu exibiria, hoje tem a sua graça, houve tempos em que não tinha nenhuma."
Alberto Gonçalves
Se é dúbia a referência a Verdi, cujas óperas mais célebres denunciam justamente a dissimulação com que a sociedade condena as relações amorosas entre os poderosos e os simples, percebe-se perfeitamente a origem do moralismo que transborda da prosa. Não se passa uma vida a venerar Estaline e a militar no PCP em vão. Subsidiária dos mandamentos soviéticos, a filial caseira aplicou aos respectivos fiéis um código de conduta "familiar" profundamente conservador, capaz de traduzir na intimidade a "superioridade moral" que possuíam na vida pública. Não importa aqui a hipocrisia e a falibilidade do exercício, nem as liberdades sexuais dos anos sessenta, que contaminaram a pureza dos camaradas jovens: o mundo teórico de Saramago (o prático ignoro) sedimentou-se nas décadas anteriores, e desde então ele dedica à "decadência burguesa" o horror das almas castas.
Há nisto muito de bíblico, embora em interpretação literal e tom de sacristia. O sermão do Nobel em nada se distingue da ira "regeneradora" de evangélicos cristãos e mullahs islâmicos, na medida em que exemplifica um padrão de pensamento totalitário e relembra de que modo os beatos se apropriaram da dimensão religiosa do marxismo. Para os beatos, a observância da fé é o único critério que define um indivíduo e o distingue das hordas de pecadores sem tino que se entregam às tentações terrenas. Obviamente, não é Berlusconi a "coisa", e se o processo de desumanização comunista, que Saramago exibe como um museu exibiria, hoje tem a sua graça, houve tempos em que não tinha nenhuma."
Alberto Gonçalves
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home