Cavaco Silva, segundo acto
"De acordo com o PS, o discurso de tomada de posse de Cavaco Silva foi "cruel". É difícil discordar. Para quem se habituou ao delírio e à pura mentira, o diagnóstico do presidente da República sobre a penúria da mesma possuiu demasiada exactidão.
Um estadista sensível teria aproveitado a oportunidade para uma intervenção diferente, uma intervenção evocativa do lugar mágico onde correm regatos, piam rouxinóis e habitam duendes, fadas e a Leopoldina dos supermercados, todos felizes graças à orientação de Sócrates, o Bondoso, que os protege das agruras do mundo em redor. Nem sempre Cavaco Silva é um estadista sensível.
Com a sinceridade que, infeliz e frequentemente, a presidência apenas descobre no segundo mandato, preferiu descrever a situação que temos em vez da situação que a propaganda tenta que acreditemos ter. Entre avisos para a "emergência" económica, financeira e social e constatações da "década perdida", Cavaco Silva resumidamente disse que assim não vamos lá. "Assim", grosso modo, representa o conjunto de cambalhotas, saques e acidentes a que o Governo chama medidas. "Lá" representa a saída do buraco presente.
Como se chega "lá" ou, para manter o apropriado léxico clínico, qual é a receita? Aqui, o caso complica-se. É certo que Cavaco Silva apresentou-se menos social-democrata do que é costume, e as referências às limitações e às intromissões do Estado são um bom sinal. Por azar, não são um decreto. Ao contrário do que julgavam os antigos, as palavras não convocam os objectos significados. Falar em chuva não faz chover. Falar em "sobressalto cívico" ou no "despertar" das "consciências" não implica que os cidadãos decidam imediatamente largar o cínico paternalismo dos poderes públicos e assumir a responsabilidade pelos seus destinos.
Descontada a colagem algo demagógica à nebulosa geração "à rasca", alguma vagueza nos termos e, se atendermos à época em que era primeiro-ministro, alguma incoerência nos métodos, a cura prescrita por Cavaco Silva parece correcta. Mas parece também inútil, porque impossível de aplicar. Nenhuma retórica, catastrófica que seja, suscitará as reacções adequadas às catástrofes iminentes. Nenhuma retórica salvará o país.
Sobra a Cavaco Silva a acção. Não sobra muito. Claro que os seus antecessores derrubaram governos por uma fracção dos erros cometidos pelo actual, o qual prova diariamente ser especializado na incompetência (e na indecência). Acontece que a remoção sumária do eng. Sócrates implicaria, na melhor das hipóteses, a troca por uma versão educada do eng. Sócrates. Na pior, a troca pelo eng. Sócrates. E mais nada.
Na cerimónia de quarta-feira, Cavaco mostrou perceber que a crise, a crise caseira, pitoresca e assaz nossa, não se resolve sem mudar as famosas "mentalidades". À semelhança de tantos, não mostrou perceber que as mentalidades não mudam: muda o dinheiro que as ilude e alimenta. O resto vem por inércia, não vai tardar e vai doer."
Alberto Gonçalves
Um estadista sensível teria aproveitado a oportunidade para uma intervenção diferente, uma intervenção evocativa do lugar mágico onde correm regatos, piam rouxinóis e habitam duendes, fadas e a Leopoldina dos supermercados, todos felizes graças à orientação de Sócrates, o Bondoso, que os protege das agruras do mundo em redor. Nem sempre Cavaco Silva é um estadista sensível.
Com a sinceridade que, infeliz e frequentemente, a presidência apenas descobre no segundo mandato, preferiu descrever a situação que temos em vez da situação que a propaganda tenta que acreditemos ter. Entre avisos para a "emergência" económica, financeira e social e constatações da "década perdida", Cavaco Silva resumidamente disse que assim não vamos lá. "Assim", grosso modo, representa o conjunto de cambalhotas, saques e acidentes a que o Governo chama medidas. "Lá" representa a saída do buraco presente.
Como se chega "lá" ou, para manter o apropriado léxico clínico, qual é a receita? Aqui, o caso complica-se. É certo que Cavaco Silva apresentou-se menos social-democrata do que é costume, e as referências às limitações e às intromissões do Estado são um bom sinal. Por azar, não são um decreto. Ao contrário do que julgavam os antigos, as palavras não convocam os objectos significados. Falar em chuva não faz chover. Falar em "sobressalto cívico" ou no "despertar" das "consciências" não implica que os cidadãos decidam imediatamente largar o cínico paternalismo dos poderes públicos e assumir a responsabilidade pelos seus destinos.
Descontada a colagem algo demagógica à nebulosa geração "à rasca", alguma vagueza nos termos e, se atendermos à época em que era primeiro-ministro, alguma incoerência nos métodos, a cura prescrita por Cavaco Silva parece correcta. Mas parece também inútil, porque impossível de aplicar. Nenhuma retórica, catastrófica que seja, suscitará as reacções adequadas às catástrofes iminentes. Nenhuma retórica salvará o país.
Sobra a Cavaco Silva a acção. Não sobra muito. Claro que os seus antecessores derrubaram governos por uma fracção dos erros cometidos pelo actual, o qual prova diariamente ser especializado na incompetência (e na indecência). Acontece que a remoção sumária do eng. Sócrates implicaria, na melhor das hipóteses, a troca por uma versão educada do eng. Sócrates. Na pior, a troca pelo eng. Sócrates. E mais nada.
Na cerimónia de quarta-feira, Cavaco mostrou perceber que a crise, a crise caseira, pitoresca e assaz nossa, não se resolve sem mudar as famosas "mentalidades". À semelhança de tantos, não mostrou perceber que as mentalidades não mudam: muda o dinheiro que as ilude e alimenta. O resto vem por inércia, não vai tardar e vai doer."
Alberto Gonçalves
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