Roletas Humanas.
"Ontem, o número de soldados norte-americanos mortos na guerra do Iraque ultrapassou a casa dos 1000. Segundo as agências, a lista é um retrato da América, com jovens vindos de todos os 50 estados da União (excepto o Alasca) para combater e morrer em território iraquiano. Impossível não recordar, agora que o terceiro aniversário do 11 de Setembro se aproxima, que também a lista dos mártires das torres gémeas reflectia a diversidade da América nos seus mortos, nas suas origens, nos seus credos, nas suas culturas. O mesmo monstro que ali viu, vitorioso, o coração de Nova Iorque em chamas, tem vindo a semear a morte com insaciável sede de sangue e de espectacularidade. George W. Bush, que insiste na sua reeleição e que faz dessa ameaça permanente um trunfo para garantir o posto na Casa Branca, disse, ao ser confrontado com os mais de 1000 soldados mortos no Iraque: "Lamentamos todas as vidas perdidas. Estamos a fazer progressos [na guerra contra o terrorismo], estamos no caminho certo". O problema, não só para Bush como para todos nós, é que os terroristas podem, dispensando a primeira frase (porque não lamentam as vidas perdidas), parafrasear o presidente norte-americano.
Também eles se acharão a fazer progressos, também eles se acharão no "caminho certo." Porquê? Porque é cada vez mais fácil arregimentar mártires fanáticos para atentados de maior ou menor espectacularidade e porque, à partida, todos eles têm garantida cobertura mediática à escala mundial. É impossível fugir a esta dura realidade: usando sobretudo gente disposta a morrer semeando a morte, os terroristas atingem o primeiro dos seus objectivos, espalhar o medo, de forma "barata" e terrivelmente eficaz; em segundo lugar, pela ansiedade e pela rejeição que provocam as suas incursões assassinas, sabem que toda a imprensa repercutirá os seus "feitos", dando-lhes o eco que pretendem. Esta última certeza é tanto mais dolorosa quando não é imaginável que, entre a imprensa do mundo livre, alguém se disponha a usar a censura como arma antiterrorista, privando a opinião pública da informação a que tem direito, mesmo nos momentos mais extremos.
O repugnante caso dos reféns, que inomináveis grupos de fanáticos têm vindo a usar sem freio, fazendo deles moeda de troca ou alvo de cega vingança, é um dos exemplos que melhor confirma esta lógica infernal. Cada refém, capturado de preferência entre gente indefesa (funcionários indistintos, membros de organizações humanitárias, jornalistas, até mesmo activistas antiguerra) é exibido, filmado, ameaçado e por fim degolado, ou fuzilado, ou excepcionalmente libertado, garantidas que foram as atenções mediáticas do mundo sobre a sua sorte. Ao lado das armas convencionais, metralhadoras ou espadas, há outras, indispensáveis nestes crimes: câmaras de filmar e videogravadores. Porque a imagem é essencial nestas roletas humanas, onde agonizam reféns e onde o número que sai é quase sempre o da morte. Foi assim no 11 de Setembro. É assim ainda hoje."
NUNO PACHECO
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