sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Dois países

"Quem vai ouvindo as intervenções do primeiro-ministro e dos membros do Governo, que todos os dias protagonizam boa parte das notícias que nos chegam, só pode concluir uma de duas coisas ou aquelas ilustres figuras vivem num país diferente, ou há um divórcio irreparável entre o Portugal real e os seus governantes.

De facto, à visão optimista de Sócrates, traduzida num constante proclamar do sucesso das políticas levadas a cabo pelos diferentes ministros, a cujo Conselho preside, opõem-se as, cada vez maiores, dificuldades vividas no dia-a-dia pela maioria dos cidadãos. E é essa experiência do quotidiano que configura o verdadeiro país, confirmado por relatórios internacionais e reflexões internas.

Um país atravessado por desigualdades gritantes, refém da pobreza que assola uns e ameaça outros, sem que os governantes façam o que lhe compete para a combater, pelo menos nos grupos mais atingidos, como é o caso dos idosos, das mulheres e das crianças. A situação é tão evidente que a própria Comissão Europeia exorta Portugal a implementar medidas intensivas de apoio financeiro às famílias em risco de empobrecimento, ajudando ao mesmo tempo os que estão sem trabalho a procurar e encontrar emprego.

Este país sofrido é igualmente um país de paradoxos. No próprio dia em que ouvíamos dizer que, em Portugal, uma em cada cinco crianças está em risco de pobreza, a Caixa Geral de Depósitos, o banco do Estado, anunciava os maiores lucros da sua história, aproveitando para fazer saber que, face à crise internacional e para obter resultados semelhantes no próximo exercício, será forçada a aumentar o preço do dinheiro. É, por certo, o meu desconhecimento da ciência económica que faz com que isto me pareça paradoxal, surrealista, quase incompreensível.

De resto, a banca portuguesa configura crescentemente uma situação socialmente escandalosa, mesmo que tudo se passe estritamente dentro da lei. Ele são os lucros astronómicos obtidos, os salários, compensações e reformas quase obscenas dos seus gestores e quadros, a capacidade unilateral de obrigar os clientes comuns a pagarem por tudo e mais alguma coisa. Ainda agora circula na Internet uma petição, já com quase 210 mil assinaturas, contra o propósito anunciado dos bancos passarem a cobrar 1,5 euros por cada levantamento Multibanco.

Mas a vergonhosa distribuição da riqueza em Portugal ultrapassa o universo da banca. A tal ponto que, segundo o Eurostat, somos o segundo país, entre os 27 da União Europeia, com maior nível de desigualdade na distribuição do rendimento; pior só a Letónia. A isto se junta a ineficácia do sistema educativo; a injustiça de uma Justiça que não é igual para todos; a fraca protecção social; a desumanidade no acesso aos cuidados de saúde, a um nível mais especializado só ao alcance daqueles que possuem rendimentos elevados e vivem nos grandes centros urbanos; as diferentes formas de exclusão.

A recente tomada de posição da SEDES que constata "um mal-estar difuso, que alastra e mina a confiança" na sociedade portuguesa é mais uma machadada no país de Sócrates e seus pares. Mas é, sobretudo e tristemente, uma reflexão justa e fundada sobre o país que realmente somos. E este é um Portugal que não pode ser deixado à "cegueira" de governantes, ou à incapacidade evidenciada pelo maior partido da Oposição para ser alternativa. Só um exercício responsável de cidadania nos poderá salvar. E esse implica-nos a todos
."

Mário Contumélias

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