sexta-feira, fevereiro 29, 2008

Oportunidades e talentos

"Não faz qualquer sentido tentar transformar indivíduos “duros de ouvido” em músicos profissionais.

O conceito de igualdade de oportunidades está no centro dos infindáveis debates portugueses em torno da educação. E por boas razões. O acesso à educação por parte de todos, ricos e pobres, é a via mais importante para criar mais oportunidades para mais indivíduos. A esquerda fez desta ideia um ponto de honra e por isso liderou a grande expansão do ensino público desde o 25 de Abril de 1974.

A direita foi levada por arrastamento, mas sempre na defensiva. Ela desconfia do discurso da igualdade de oportunidades na educação porque vê nele uma justificação para o abaixamento da qualidade do ensino. Segundo a direita, a criação de igualdade de oportunidades para todos, independentemente da sua origem social e das diferenças motivacionais que o status social induz, leva a um nivelamento por baixo.

(É também por essa razão que as classes com maior capital social retiram os seus filhos do ensino público, sobretudo no básico. No superior é exactamente ao contrário, mas precisamente pelas mesmas razões: os pais preferem pôr os filhos no público porque têm a percepção – geralmente correcta – de que este é mais exigente do que o privado. No superior, são os filhos das classes com menor capital social que enchem as instituições privadas.)

Ora, se a intuição básica da esquerda, favorável ao uso do sistema educativo para gerar maior igualdade de oportunidades, é a mais correcta, a direita tem certamente razão quanto ao efeito que isso produziu no abaixamento dos padrões educativos, tanto ao nível cognitivo como comportamental. Do meu ponto de vista, o decréscimo desses padrões não tem a ver com a igualdade de oportunidades em si mesma, mas antes com o modo incorrecto como a esquerda interpretou essa ideia.

O problema da esquerda consistiu em olhar linearmente para a igualdade de oportunidades, pensando que bastaria garantir o acesso de todos os indivíduos para que todos ficassem em posição similar. Com o seu característico optimismo em relação à natureza humana, a esquerda pensava que, uma vez no sistema, todos poderiam, “grosso modo”, obter resultados semelhantes.

Esta convicção da esquerda é, infelizmente, falsa. Os indivíduos são desigualmente dotados. Há enormes disparidades no talento para a matemática ou para o desenvolvimento das competências linguísticas, tal como há disparidade nos talentos para o desporto ou para a música. Nenhum sistema educativo consegue transformar alguém desprovido de “ouvido” num músico dotado, por exemplo.

Se partirmos desta constatação, teremos de convir que o sistema educativo não pode, consistentemente, dar as mesmas oportunidades a todos, mas apenas dar as mesmas oportunidades a todos os que são igualmente dotados. Para continuar com o mesmo exemplo, não faz qualquer sentido tentar transformar indivíduos “duros de ouvido” em músicos profissionais.

Numa sociedade mais justa – que a esquerda diz querer, embora muitas vezes pareça não saber como lá chegar – o equilíbrio social entre os mais e os menos talentosos não se faz através da criação de oportunidades iguais para todos no sistema educativo, mas antes através da distribuição dos rendimentos. Os indivíduos cujos talentos naturais são pior remunerados pelo mercado ficarão necessariamente por baixo na repartição dos rendimentos, antes de qualquer intervenção estatal. Cabe à função distributiva do Estado corrigir o diferencial de rendimentos entre os menos e os mais dotados. Numa sociedade solidária, como nós achamos que a nossa deve ser, o homem do lixo ou a empregada de mesa devem ser especialmente beneficiados (pela via fiscal, mediante a fixação de um salário mínimo elevado, etc.).

Portanto, a rectificação das diferenças de dotes naturais entre os indivíduos deve ser operada pelas instituições que permitem a distribuição do rendimento e não pela acção do sistema educativo. Quando este procura criar igualdade de oportunidades para todos, e não apenas para todos os que são igualmente dotados, as coisas começam a correr mal. Por isso, um sistema educativo que interprete correctamente o ideal da igualdade de oportunidades não pode hesitar em avaliar e hierarquizar os estudantes, assim como aqueles que avaliam os estudantes
."

João Cardoso Rosas

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