O campeão do minimalismo político
"É sabido que não sou fã do estilo do primeiro-ministro, da forma mecânica e plastificada como se exprime, do registo minimalista que utiliza na exposição dos problemas, do seu imediatismo de perspectiva a que – como escreveram esta semana alguns comentadores – falta alma e visão de futuro. Para Sócrates, o mundo é a preto e branco, dois e dois são quatro e a complexidade das questões um capricho de políticos e intelectuais frustrados que insistem em complicar o que é simples e linear. Será difícil, aliás, encontrar um chefe de Governo, pelo menos na Europa, cujo discurso seja de uma linearidade tão seca e desprovida de pathos ou cujos clichés de oratória e o obsessivo fetiche pelos números se repitam de modo tão meticulosamente planeado.
Se Guterres era uma picareta falante, Sócrates parece um robô programado para imitar os humanos. Por isso, pedir-lhe uma ponta de emoção ou o reconhecimento das dificuldades nacionais e dos erros cometidos pelo Governo – como pretendia Lobo Xavier na última Quadratura do Círculo – traduz um equívoco básico de compreensão da personagem. Não se pode pedir a ninguém que violente a sua natureza e seja aquilo que decididamente não é. Ora, Sócrates sempre foi o que, mais uma vez, mostrou ser.
A questão é que Sócrates se mostra muitíssimo eficaz no registo de comunicação que lhe é próprio, seja nos debates parlamentares, seja nas entrevistas à televisão, tal como voltou a acontecer esta semana na entrevista à SIC. Evidentemente, pode dizer-se que, neste caso, as regras do jogo negociadas para a entrevista e o tom macio utilizado pelos entrevistadores contribuíram para o sucesso da prestação do primeiro-ministro. Mas isso está muito longe de explicar tudo.
As regras eram, decerto, manifestamente constrangedoras e os entrevistadores pareceram claramente inibidos por elas, o que, mesmo assim, não impediu Sócrates de, por várias vezes, recorrer a um velhíssimo truque seu que é lamentar as interrupções dos jornalistas e pedir que lhe deixem terminar o raciocínio. Pode também discutir-se se essas regras deveriam ter sido aceites ou se não será compreensível a complacência da SIC para poder ter o privilégio – e as audiências – de uma entrevista supostamente histórica. A verdade, porém, é que não há memória, nos últimos três anos, de um debate parlamentar ou de uma entrevista em que o primeiro-ministro tenha dado a imagem de sair mal de cena. Mesmo nos seus momentos mais vacilantes, Sócrates parece sempre comprovar a eficácia do seu minimalismo político e do seu discurso pós-ideológico (como agora está na moda dizer-se).
Por que é que isto acontece? Ao contrário do que o próprio Sócrates teria tendência para diagnosticar, os motivos não serão simples e lineares. Mas talvez se possa encontrar uma razão principal no esgotamento da velha retórica política das oposições e, também, dos quadros clássicos das entrevistas televisivas (quer sejam de tom mais simpático e condescendente, quer pretendam assumir uma tónica mais agressiva, em que o entrevistador procura erradamente medir forças com o entrevistado e disputar-lhe o protagonismo, o que acaba invariavelmente por beneficiar o segundo aos olhos do público).
Além disso, apesar da clamorosa impopularidade de muitas medidas governamentais, Sócrates capitalizou o cansaço e o desencanto do país em relação aos governos que o antecederam, vacinando a maioria dos portugueses contra os riscos de um regresso ao passado. Entre uma direita que se mostrou incapaz de reformar e uma esquerda de protesto que evidencia não ter vocação para governar, Sócrates desfruta da situação de ser, pelo menos nos próximos anos, a única alternativa a si mesmo.
Melhor ou pior, criou a convicção da inevitabilidade das reformas em nome da sustentabilidade da economia e do sistema de segurança social. E mesmo que os números que constantemente evoca sejam falaciosos e contraditórios com a realidade (como sucede em relação ao desemprego), ele sabe manejá-los melhor do que a maioria dos opositores ou, pelo menos, vende com marketing mais refinado o seu produto propagandístico.
Naturalmente, o Governo acusa o desgaste de três anos de políticas que, com frequência, misturaram o ataque a privilégios corporativos com o desprezo pelos direitos sociais, o agravamento das desigualdades ou a própria demissão das suas responsabilidades (de que foi exemplo a recente declaração do ministro do Ambiente sobre as cheias). Em todo o caso, o que as sondagens mostram é que, embora em queda e arriscando-se a perder a maioria absoluta, o PS parte para as próximas eleições com uma taxa de aprovação desconcertante e claramente contraditória com o mal-estar social vigente em tantos sectores da vida do país. Aliás, embora recusando-se sempre a dar o braço a torcer – como é o seu estilo – Sócrates deu o sinal de que a onda de descontentamento que se fez sentir de forma mais gritante na área da Saúde exigia uma cirurgia de urgência.
Quer tudo isto dizer que o minimalismo de Sócrates tem um amanhã radioso à sua frente? De modo nenhum. Significa apenas que, perante o persistente vazio político e a falta de alternativas (e alternâncias) credíveis, a vida portuguesa tem o seu horizonte bloqueado até à implosão desse minimalismo. Ou seja, quando for manifestamente evidente que ele já não cumpre os serviços mínimos a que se propôs, quando já não for possível disfarçar o indisfarçável, quando a crise internacional ameaçar reduzir a uma miragem os números mágicos do crescimento económico. O futuro do país exige outra ambição, outro fôlego, outra inspiração – e outros protagonistas. A questão (nada simples, nada linear) é saber onde se encontram e em que condições poderão despontar."
Vicente Jorge Silva
Se Guterres era uma picareta falante, Sócrates parece um robô programado para imitar os humanos. Por isso, pedir-lhe uma ponta de emoção ou o reconhecimento das dificuldades nacionais e dos erros cometidos pelo Governo – como pretendia Lobo Xavier na última Quadratura do Círculo – traduz um equívoco básico de compreensão da personagem. Não se pode pedir a ninguém que violente a sua natureza e seja aquilo que decididamente não é. Ora, Sócrates sempre foi o que, mais uma vez, mostrou ser.
A questão é que Sócrates se mostra muitíssimo eficaz no registo de comunicação que lhe é próprio, seja nos debates parlamentares, seja nas entrevistas à televisão, tal como voltou a acontecer esta semana na entrevista à SIC. Evidentemente, pode dizer-se que, neste caso, as regras do jogo negociadas para a entrevista e o tom macio utilizado pelos entrevistadores contribuíram para o sucesso da prestação do primeiro-ministro. Mas isso está muito longe de explicar tudo.
As regras eram, decerto, manifestamente constrangedoras e os entrevistadores pareceram claramente inibidos por elas, o que, mesmo assim, não impediu Sócrates de, por várias vezes, recorrer a um velhíssimo truque seu que é lamentar as interrupções dos jornalistas e pedir que lhe deixem terminar o raciocínio. Pode também discutir-se se essas regras deveriam ter sido aceites ou se não será compreensível a complacência da SIC para poder ter o privilégio – e as audiências – de uma entrevista supostamente histórica. A verdade, porém, é que não há memória, nos últimos três anos, de um debate parlamentar ou de uma entrevista em que o primeiro-ministro tenha dado a imagem de sair mal de cena. Mesmo nos seus momentos mais vacilantes, Sócrates parece sempre comprovar a eficácia do seu minimalismo político e do seu discurso pós-ideológico (como agora está na moda dizer-se).
Por que é que isto acontece? Ao contrário do que o próprio Sócrates teria tendência para diagnosticar, os motivos não serão simples e lineares. Mas talvez se possa encontrar uma razão principal no esgotamento da velha retórica política das oposições e, também, dos quadros clássicos das entrevistas televisivas (quer sejam de tom mais simpático e condescendente, quer pretendam assumir uma tónica mais agressiva, em que o entrevistador procura erradamente medir forças com o entrevistado e disputar-lhe o protagonismo, o que acaba invariavelmente por beneficiar o segundo aos olhos do público).
Além disso, apesar da clamorosa impopularidade de muitas medidas governamentais, Sócrates capitalizou o cansaço e o desencanto do país em relação aos governos que o antecederam, vacinando a maioria dos portugueses contra os riscos de um regresso ao passado. Entre uma direita que se mostrou incapaz de reformar e uma esquerda de protesto que evidencia não ter vocação para governar, Sócrates desfruta da situação de ser, pelo menos nos próximos anos, a única alternativa a si mesmo.
Melhor ou pior, criou a convicção da inevitabilidade das reformas em nome da sustentabilidade da economia e do sistema de segurança social. E mesmo que os números que constantemente evoca sejam falaciosos e contraditórios com a realidade (como sucede em relação ao desemprego), ele sabe manejá-los melhor do que a maioria dos opositores ou, pelo menos, vende com marketing mais refinado o seu produto propagandístico.
Naturalmente, o Governo acusa o desgaste de três anos de políticas que, com frequência, misturaram o ataque a privilégios corporativos com o desprezo pelos direitos sociais, o agravamento das desigualdades ou a própria demissão das suas responsabilidades (de que foi exemplo a recente declaração do ministro do Ambiente sobre as cheias). Em todo o caso, o que as sondagens mostram é que, embora em queda e arriscando-se a perder a maioria absoluta, o PS parte para as próximas eleições com uma taxa de aprovação desconcertante e claramente contraditória com o mal-estar social vigente em tantos sectores da vida do país. Aliás, embora recusando-se sempre a dar o braço a torcer – como é o seu estilo – Sócrates deu o sinal de que a onda de descontentamento que se fez sentir de forma mais gritante na área da Saúde exigia uma cirurgia de urgência.
Quer tudo isto dizer que o minimalismo de Sócrates tem um amanhã radioso à sua frente? De modo nenhum. Significa apenas que, perante o persistente vazio político e a falta de alternativas (e alternâncias) credíveis, a vida portuguesa tem o seu horizonte bloqueado até à implosão desse minimalismo. Ou seja, quando for manifestamente evidente que ele já não cumpre os serviços mínimos a que se propôs, quando já não for possível disfarçar o indisfarçável, quando a crise internacional ameaçar reduzir a uma miragem os números mágicos do crescimento económico. O futuro do país exige outra ambição, outro fôlego, outra inspiração – e outros protagonistas. A questão (nada simples, nada linear) é saber onde se encontram e em que condições poderão despontar."
Vicente Jorge Silva
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home