quinta-feira, abril 03, 2008

Laicismo e clericalismo

"Alguns militantes do laicismo gostam de usar as questões fracturantes apenas como desafio à autoridade simbólica da Igreja.

Há, na sociedade portuguesa, sinais da vontade de ressuscitar a velha clivagem entre laicismo e clericalismo. Esta clivagem, tão marcante na história contemporânea do país, é mais um problema de que não necessitamos no presente. Trata-se de um problema que pertence a um passado que devíamos compreender para conjurar, não para ressuscitar.

O PS, por razões de estratégia política, decidiu agora alterar a lei do divórcio de um modo que sabe ser provocatório para a direita conservadora e para a Igreja. Até aqui, nada de novo. Era algo de previsível. Uma vez que o PS não tem margem de manobra para parecer mais de esquerda em termos económicos e sociais, aposta em algumas causas fracturantes. Mas o mais extraordinário foi a reacção pavloviana dos sectores conservadores, dentro e fora da Igreja. Morderam imediatamente o isco e vieram logo fazer declarações públicas algo exaltadas. Não percebem sequer que estão a seguir o ‘script’ que o próprio PS escreveu. Cada vez que o bispo de Braga fala em público contra o Governo do PS, este ganha mais uns votos.

O laicismo de alguns sectores do PS – e do Bloco de Esquerda – constitui um chamariz aparentemente irresistível para o clericalismo da direita conservadora, e vice-versa. Quando um se manifesta, o outro logo contra-ataca. Para perceber como isto funciona na actualidade não necessitamos de grande imaginação. Basta olhar para o que se passa em Espanha. O Governo espanhol apostou – por sinal com sucesso – na cartada do laicismo e isso levou a um exacerbamento do clericalismo. Mas o exacerbar do clericalismo na última campanha eleitoral apenas produzirá no futuro um maior laicismo. Ao contrário do que pensam os ingénuos, laicismo e clericalismo não se repelem. Pelo contrário, eles alimentam-se mutuamente. Fortalecer um significa sempre robustecer o outro.

Mas o problema vai muito para além das estratégias partidárias conjunturais. Tanto o laicismo como o clericalismo retiram racionalidade e razoabilidade à vida pública. Se deixarmos que eles dominem a arena política, a crispação tomará rapidamente conta da democracia.

As sociedades democráticas, herdeiras do constitucionalismo liberal, são necessariamente pluralistas. Isso é incompatível com o domínio de uma Igreja sobre a sociedade e com o uso do braço do Estado por parte da Igreja, com vista a impôr à generalidade dos cidadãos as formas de vida que defende para os seus crentes. Tradicionalmente, a Igreja que está em Portugal e em outros países da Europa do sul teve a maior dificuldade em lidar com este pluralismo moderno. Alguns bispos, identificados com a direita conservadora, continuam hoje a experimentar o mesmo problema. Querem dizer ao Parlamento e ao Governo aquilo que eles devem fazer e muito dificilmente aceitam a necessidade de legislar e governar para um país que é bem mais plural do que eles pensam (aliás, os próprios crentes são também muito mais plurais e abertos à pluralidade do que alguns dos nossos bispos crêem).

Ao clericalismo exacerbado por parte de alguns corresponde um laicismo de igual quilate. Há muita gente entre as elites políticas portuguesas, incluindo no partido do Governo, que gostaria de usar o Estado para banir a Igreja do espaço público. Alguns militantes do laicismo gostam de usar as questões fracturantes apenas como desafio à autoridade simbólica da Igreja. Da mesma forma, não admitem a abertura de sectores como a educação a uma maior intervenção da Igreja, precisamente para manterem o Estado laico como instância de socialização dominante. Ora, este laicismo é inaceitável. Não cabe ao Estado monopolizar o espaço da cidadania. A Igreja e os cristãos têm todo o direito em exercê-la. O laicismo, tal como o clericalismo, é profundamente anti-pluralista e, como tal, adverso à própria democracia.

Seria bom se um dia conseguíssemos desatar este nó na sociedade portuguesa. Para começar, podíamos aproveitar o centenário da República para descer o tom do debate e reflectir serenamente sobre as raízes profundas do laicismo e do clericalismo em Portugal, sem novas diatribes contra qualquer um dos lados. Mas, como diz Thomas More no final da sua Utopia, “Desejo-o, mais do que o espero
.”

João Cardoso Rosas

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