O ano da batata
"As reservas cerealíferas estão num mínimo histórico e só medidas estruturais capazes de aumentar a oferta resolvem o desequilíbrio.
A ONU declarou 2008 como o ano internacional da batata. Não lhe invejo a sorte – à batata: no Egipto, no Haiti, no Senegal ou no Bangladesh rebentaram motins populares contra o aumento dos preços dos bens alimentares e espera-se que o tubérculo seja a solução para a crise de fome mundial que se avoluma no horizonte.
De acordo com os dados e previsões do Banco Mundial, no final deste ano e por comparação com 2004, os preços do trigo e do arroz terão duplicado; açúcar, soja e o milho serão entre 56% e 79% mais caros. O impacto do aumento do custo dos bens alimentares é brutalmente regressivo, atingindo sobretudo os mais pobres, cuja despesa em bens alimentares representa uma proporção maior da despesa total. No Bangladesh, para comprar um pacote de 2kg de arroz já é necessário gastar o equivalente a metade do rendimento diário de uma família pobre. O presidente do Banco Mundial avisa que um aumento médio do custo dos bens alimentares de 20% poderá empurrar cerca de 100 milhões de pessoas para baixo da linha de pobreza absoluta de 1 dólar americano/dia.
Uma causa próxima da subida dos preços dos bens alimentares é o aumento dos preços dos combustíveis, que teve dois efeitos agravantes da crise de escassez. Por um lado aumentou os custos da produção agrícola; por outro criou as condições para uma irresponsável euforia política de subsídios ao biofuel, que motivou um desvio significativo de solos agrícolas para a produção de energia. Como era de esperar, ninguém admite o erro crasso, quanto mais propor a extinção dos subsídios agrícolas ao biofuel.
Mas a tendência de subida dos preços dos bens alimentares antecedeu em muito a euforia do biofuel e é sobretudo o resultado do forte crescimento da procura com origem nas economias emergentes. As reservas cerealíferas mundiais estão num mínimo histórico e só medidas estruturais capazes de aumentar a oferta poderão resolver o desequilíbrio. Para isso é imperativo terminar com o condicionamento político dos mercados agrícolas, a enorme rede de subsídios, proibições, quotas burocráticas e proteccionismo que na UE e nos EUA sustenta os rendimentos artificialmente elevados dos agricultores e desincentiva a produção agrícola que poderia satisfazer o dramático excesso de procura global.
Também não há boas notícias em termos da evolução previsível do preço do petróleo, que permanecerá a níveis extremamente elevados. A procura continuará a crescer, dos actuais 87 milhões de barris/dia para cerca de 99 milhões de barris/dia em 2015. Seria de esperar que a oferta aumentasse, reagindo ao estímulo gerado pelos preços elevados. Mas isso é pouco provável. A produção de países como o México e a Rússia está em declínio, em grande parte por causa da obsolescência tecnológica resultante da nacionalização dos recursos, que expropriou e desencorajou o investimento das petrolíferas internacionais em novas tecnologias. A Arábia Saudita pretende estabilizar a produção em torno do patamar dos 12,5 milhões de barris/dia nos próximos anos. A generalidade dos países da OPEP seguirão esta orientação.
Embora pareça paradoxal, aumentar a produção de petróleo nas circunstâncias actuais seria irracional. O petróleo é um recurso esgotável e isso significa que a opção de não extracção pode ser um investimento rentável, desde que o preço futuro esperado seja superior ao preço corrente. Para os países produtores e exportadores de petróleo onde a indústria petrolífera é estatal há basicamente duas opções: investir parte das receitas de exportação em aplicações de capital, ou “investir” na não extracção, diferindo as receitas para o futuro. Estes países têm feito as duas coisas: em 2006 os “petrodólares” passaram a ser a principal origem de fluxos globais de capital, ultrapassando os países asiáticos pela primeira vez desde os anos 70. Mas algumas das possíveis aplicações destes fundos estão-lhes vedadas: os EUA já deixaram claro que não permitirão que as principais corporações americanas sejam adquiridas por fundos soberanos asiáticos ou de países exportadores de petróleo. Limitada a aplicação em activos, o investimento através do diferimento da extracção torna-se uma opção racional.
Entretanto, para 100 milhões de seres humanos o futuro é uma promessa de fome. Com uma localização difusa, não produzem facilmente as imagens de miséria indefesa e cheia de moscas, ao gosto da piedade pós-religiosa. Ao contrário dos tibetanos, também não se encaixam facilmente na categoria cénica do “oprimido histórico” cuja defesa confere uma falsa sensação de pureza moral. Resta-lhes esperar pelo que vier. Não têm pão? Comam batatas, o brioche do séc. XXI."
Fernando Gabriel
A ONU declarou 2008 como o ano internacional da batata. Não lhe invejo a sorte – à batata: no Egipto, no Haiti, no Senegal ou no Bangladesh rebentaram motins populares contra o aumento dos preços dos bens alimentares e espera-se que o tubérculo seja a solução para a crise de fome mundial que se avoluma no horizonte.
De acordo com os dados e previsões do Banco Mundial, no final deste ano e por comparação com 2004, os preços do trigo e do arroz terão duplicado; açúcar, soja e o milho serão entre 56% e 79% mais caros. O impacto do aumento do custo dos bens alimentares é brutalmente regressivo, atingindo sobretudo os mais pobres, cuja despesa em bens alimentares representa uma proporção maior da despesa total. No Bangladesh, para comprar um pacote de 2kg de arroz já é necessário gastar o equivalente a metade do rendimento diário de uma família pobre. O presidente do Banco Mundial avisa que um aumento médio do custo dos bens alimentares de 20% poderá empurrar cerca de 100 milhões de pessoas para baixo da linha de pobreza absoluta de 1 dólar americano/dia.
Uma causa próxima da subida dos preços dos bens alimentares é o aumento dos preços dos combustíveis, que teve dois efeitos agravantes da crise de escassez. Por um lado aumentou os custos da produção agrícola; por outro criou as condições para uma irresponsável euforia política de subsídios ao biofuel, que motivou um desvio significativo de solos agrícolas para a produção de energia. Como era de esperar, ninguém admite o erro crasso, quanto mais propor a extinção dos subsídios agrícolas ao biofuel.
Mas a tendência de subida dos preços dos bens alimentares antecedeu em muito a euforia do biofuel e é sobretudo o resultado do forte crescimento da procura com origem nas economias emergentes. As reservas cerealíferas mundiais estão num mínimo histórico e só medidas estruturais capazes de aumentar a oferta poderão resolver o desequilíbrio. Para isso é imperativo terminar com o condicionamento político dos mercados agrícolas, a enorme rede de subsídios, proibições, quotas burocráticas e proteccionismo que na UE e nos EUA sustenta os rendimentos artificialmente elevados dos agricultores e desincentiva a produção agrícola que poderia satisfazer o dramático excesso de procura global.
Também não há boas notícias em termos da evolução previsível do preço do petróleo, que permanecerá a níveis extremamente elevados. A procura continuará a crescer, dos actuais 87 milhões de barris/dia para cerca de 99 milhões de barris/dia em 2015. Seria de esperar que a oferta aumentasse, reagindo ao estímulo gerado pelos preços elevados. Mas isso é pouco provável. A produção de países como o México e a Rússia está em declínio, em grande parte por causa da obsolescência tecnológica resultante da nacionalização dos recursos, que expropriou e desencorajou o investimento das petrolíferas internacionais em novas tecnologias. A Arábia Saudita pretende estabilizar a produção em torno do patamar dos 12,5 milhões de barris/dia nos próximos anos. A generalidade dos países da OPEP seguirão esta orientação.
Embora pareça paradoxal, aumentar a produção de petróleo nas circunstâncias actuais seria irracional. O petróleo é um recurso esgotável e isso significa que a opção de não extracção pode ser um investimento rentável, desde que o preço futuro esperado seja superior ao preço corrente. Para os países produtores e exportadores de petróleo onde a indústria petrolífera é estatal há basicamente duas opções: investir parte das receitas de exportação em aplicações de capital, ou “investir” na não extracção, diferindo as receitas para o futuro. Estes países têm feito as duas coisas: em 2006 os “petrodólares” passaram a ser a principal origem de fluxos globais de capital, ultrapassando os países asiáticos pela primeira vez desde os anos 70. Mas algumas das possíveis aplicações destes fundos estão-lhes vedadas: os EUA já deixaram claro que não permitirão que as principais corporações americanas sejam adquiridas por fundos soberanos asiáticos ou de países exportadores de petróleo. Limitada a aplicação em activos, o investimento através do diferimento da extracção torna-se uma opção racional.
Entretanto, para 100 milhões de seres humanos o futuro é uma promessa de fome. Com uma localização difusa, não produzem facilmente as imagens de miséria indefesa e cheia de moscas, ao gosto da piedade pós-religiosa. Ao contrário dos tibetanos, também não se encaixam facilmente na categoria cénica do “oprimido histórico” cuja defesa confere uma falsa sensação de pureza moral. Resta-lhes esperar pelo que vier. Não têm pão? Comam batatas, o brioche do séc. XXI."
Fernando Gabriel
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