Dívidas incobráveis
"Não é justo, ou adequado, ou de bom senso, que os consumidores cumpridores paguem as dívidas dos não cumpridores.
A semana passada teve como ponto alto do comentário económico propostas apresentadas pela ERSE (entidade reguladora para o sector da energia) para discussão pública, em particular a possibilidade do que é chamado partilha de risco de cobrança com os consumidores.
As reacções imediatas, incluindo de responsáveis governamentais, foram de oposição frontal, com base numa premissa simples: não é justo, ou adequado, ou de bom senso, que os consumidores cumpridores paguem as dívidas dos não cumpridores. Não só não se deve pagar um serviço que não se consome, como não se beneficiar quem prevarica. O argumento parece simples e persuasivo. Tão simples e persuasivo que poucos se dedicaram a pensar no assunto.
Como a proposta está em discussão pública, e como contribuição para essa discussão, vale a pena avaliar com cuidado o que está em causa. A situação em causa caracteriza-se por se ter uma empresa que presta um serviço, sendo que uma percentagem dos consumidores não paga, e chega a dívida a ser declarada incobrável. A empresa é regulada, sendo que os preços (tarifas) que pratica são determinados pela entidade reguladora, tendo em atenção custos razoáveis de operação e investimento da empresa e uma taxa de remuneração dos seus activos que seja adequada ao risco da actividade. Neste contexto, como devem ser tratadas as dívidas incobráveis?
Comecemos por uma analogia com o sector bancário – o banco ao emprestar dinheiro (crédito) não o faz à taxa de juro a que consegue obter esses fundos, e até ajusta o acréscimo (vulgo, ‘spread’) às características de risco do cliente. Clientes mais arriscados pagam mais juros, pois em média estarão mais vezes em situação de incumprimento. Significa que no caso de empréstimos bancários, os clientes cumpridores estão a pagar as dívidas incobráveis dos não cumpridores. O que vem mostrar que o tal argumento não é assim tão simples, e é contrariado pela prática de todos os dias noutros sectores. Porque é que nos empréstimos bancários, se há este efeito, não se assiste a um incumprimento mais generalizado? Por um lado, existem contratos e mecanismos que procuram recuperar os valores das dívidas. Por outro lado, a recusa a conceder crédito não atenta contra uma universalidade de acesso a serviços básicos. É preciso, por isso, detalhar um pouco mais, até porque há diferenças importantes entre os sectores.
Em primeiro lugar, os bancos não são obrigados a emprestar dinheiro, e se suspeitarem que um cliente não irá pagar o empréstimo podem recusar a operação. No fornecimento de electricidade, há objectivos de universalidade, e a alternativa de recusa de abastecimento não é fácil.
Em segundo lugar, sendo a empresa regulada, os preços são determinados tendo em atenção o que são custos de operação segundo a melhor prática por parte da empresa, incluindo nos custos a remuneração dos capitais investidos (normalmente maior quando o risco defrontado pela empresa é mais elevado).
Em terceiro lugar, é necessário ter em atenção que as pequenas diferenças de regras de funcionamento levam a enormes efeitos finais: um banco tem sempre interesse em procurar que seja cobrada a dívida, mas se a uma empresa for assegurado que as dívidas declaradas incobráveis são pagas por aumento de preço dos restantes clientes, então o seu esforço em recuperar essas dívidas vai ser pequeno, já que alguém paga de qualquer modo.
Daqui decorre que o problema central não está na questão de os cumpridores pagarem as dívidas dos incumpridores. Num contexto de empresa regulada, na medida em que o risco de cobrança é suportado pela empresa, o consumidor paga esse risco por via da taxa de remuneração permitida à empresa. O essencial para avaliar a proposta colocada à discussão é saber como se altera a relação risco – remuneração da empresa regulada (se suporta menor risco, o custo de capital para efeitos de remuneração poderá ser mais baixo, logo preços mais baixos, beneficiando por esta via todos os consumidores), e como se altera o comportamento da empresa face às dívidas incobráveis. Em concreto, é relevante que qualquer partilha de risco de cobrança não retire à empresa o interesse em recuperar os valores das dívidas. São estes os dois aspectos que devem merecer resposta muito clara no decurso da discussão pública. O fundamental não é discutir se as dívidas incobráveis são pagas pelos clientes cumpridores, mas sim como são pagas, dado as tarifas serem reguladas."
Pedro Pita Barros
A semana passada teve como ponto alto do comentário económico propostas apresentadas pela ERSE (entidade reguladora para o sector da energia) para discussão pública, em particular a possibilidade do que é chamado partilha de risco de cobrança com os consumidores.
As reacções imediatas, incluindo de responsáveis governamentais, foram de oposição frontal, com base numa premissa simples: não é justo, ou adequado, ou de bom senso, que os consumidores cumpridores paguem as dívidas dos não cumpridores. Não só não se deve pagar um serviço que não se consome, como não se beneficiar quem prevarica. O argumento parece simples e persuasivo. Tão simples e persuasivo que poucos se dedicaram a pensar no assunto.
Como a proposta está em discussão pública, e como contribuição para essa discussão, vale a pena avaliar com cuidado o que está em causa. A situação em causa caracteriza-se por se ter uma empresa que presta um serviço, sendo que uma percentagem dos consumidores não paga, e chega a dívida a ser declarada incobrável. A empresa é regulada, sendo que os preços (tarifas) que pratica são determinados pela entidade reguladora, tendo em atenção custos razoáveis de operação e investimento da empresa e uma taxa de remuneração dos seus activos que seja adequada ao risco da actividade. Neste contexto, como devem ser tratadas as dívidas incobráveis?
Comecemos por uma analogia com o sector bancário – o banco ao emprestar dinheiro (crédito) não o faz à taxa de juro a que consegue obter esses fundos, e até ajusta o acréscimo (vulgo, ‘spread’) às características de risco do cliente. Clientes mais arriscados pagam mais juros, pois em média estarão mais vezes em situação de incumprimento. Significa que no caso de empréstimos bancários, os clientes cumpridores estão a pagar as dívidas incobráveis dos não cumpridores. O que vem mostrar que o tal argumento não é assim tão simples, e é contrariado pela prática de todos os dias noutros sectores. Porque é que nos empréstimos bancários, se há este efeito, não se assiste a um incumprimento mais generalizado? Por um lado, existem contratos e mecanismos que procuram recuperar os valores das dívidas. Por outro lado, a recusa a conceder crédito não atenta contra uma universalidade de acesso a serviços básicos. É preciso, por isso, detalhar um pouco mais, até porque há diferenças importantes entre os sectores.
Em primeiro lugar, os bancos não são obrigados a emprestar dinheiro, e se suspeitarem que um cliente não irá pagar o empréstimo podem recusar a operação. No fornecimento de electricidade, há objectivos de universalidade, e a alternativa de recusa de abastecimento não é fácil.
Em segundo lugar, sendo a empresa regulada, os preços são determinados tendo em atenção o que são custos de operação segundo a melhor prática por parte da empresa, incluindo nos custos a remuneração dos capitais investidos (normalmente maior quando o risco defrontado pela empresa é mais elevado).
Em terceiro lugar, é necessário ter em atenção que as pequenas diferenças de regras de funcionamento levam a enormes efeitos finais: um banco tem sempre interesse em procurar que seja cobrada a dívida, mas se a uma empresa for assegurado que as dívidas declaradas incobráveis são pagas por aumento de preço dos restantes clientes, então o seu esforço em recuperar essas dívidas vai ser pequeno, já que alguém paga de qualquer modo.
Daqui decorre que o problema central não está na questão de os cumpridores pagarem as dívidas dos incumpridores. Num contexto de empresa regulada, na medida em que o risco de cobrança é suportado pela empresa, o consumidor paga esse risco por via da taxa de remuneração permitida à empresa. O essencial para avaliar a proposta colocada à discussão é saber como se altera a relação risco – remuneração da empresa regulada (se suporta menor risco, o custo de capital para efeitos de remuneração poderá ser mais baixo, logo preços mais baixos, beneficiando por esta via todos os consumidores), e como se altera o comportamento da empresa face às dívidas incobráveis. Em concreto, é relevante que qualquer partilha de risco de cobrança não retire à empresa o interesse em recuperar os valores das dívidas. São estes os dois aspectos que devem merecer resposta muito clara no decurso da discussão pública. O fundamental não é discutir se as dívidas incobráveis são pagas pelos clientes cumpridores, mas sim como são pagas, dado as tarifas serem reguladas."
Pedro Pita Barros
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home