quinta-feira, junho 05, 2008

FRACOS PODERES

"Ante a galhofa geral, um "vidente" assíduo nos anúncios da imprensa foi interrogado pela PSP do Porto, após clientes reclamarem de expectativas frustradas. Curioso. Não percebo como é que videntes, médiuns, astrólogos, cartomantes e predestinados similares não estão sempre sob interrogatório a pretexto de frustrarem alguma expectativa. Afinal, falamos de indivíduos que cobram dinheiro para falar com mortos e determinar a influência de Saturno no sucesso profissional, proezas moderadamente impossíveis e, com elevada probabilidade, rematadas vigarices. A única previsão que as "ciências ocultas" podem aplicar com segurança aos seus clientes é a de um futuro permeável a imposturas e impermeável ao bom senso.

Verdade que, fora das ditas "ciências", o cenário não diverge muito. Pelo Ocidente, movido a expensas do relativismo em voga, cresce a aversão ao pensamento lógico. O relativismo não se limita a equiparar às nossas as aquisições técnicas e culturais de qualquer tribo remota: invariavelmente, acha a tribo superior, como acha superiores todas as bizarrias que, de Hugo Chávez ao Islão, cheirem ao inverso da civilização euro-americana e que, de preferência, a ameacem. O fascínio da época recai inteirinho sobre o "outro", ainda que não se saiba nada acerca do "outro", nem se queira saber: o simples exotismo chega para sustentar a devoção.

Já a ausência de exotismo chega para estimular a suspeita. E é este caldo de vigorosa ignorância que leva multidões a acreditar nas toleimas que "questionem" os fundamentos do que somos, incluindo as "mentiras" do 11/9 e as "conspirações" da alta finança para controlar o mundo. Só em Portugal, e só na presente semana, acreditou-se: que o aumento da desigualdade é uma irrevogável tragédia (mesmo que a vida dos menos abonados melhore no processo); que o preço dos combustíveis é tramóia especulativa das gasolineiras (mesmo que, em 2007, os ganhos do Estado no ISP quase multipliquem por dez os "lucros escandalosos" da Galp - na qual, de resto, o Estado detém uma "golden share"); que os pescadores são tristes vítimas da carestia (mesmo que subsidiados e peritos na destruição de propriedade alheia); que o crédito malparado das famílias indígenas resulta da malvadez inata da banca (mesmo que as famílias se desgracem na aquisição de bens prioritários como televisores de plasma e viagens às Caraíbas); que a culpa da crise é das políticas "neoliberais" (mesmo que o país jamais tenha experimentado a sombra de semelhante coisa); que a globalização é o puro Mal (mesmo que retire milhões de chineses e indianos da pobreza. Ou se calhar por causa disso.).

Nada a fazer. A época é dada a crenças no absurdo, e um único pormenor obstou a que a breve detenção do tal "vidente" não merecesse protestos solidários nas ruas, género "Abaixo a xenofobia!" e "Todos diferentes, todos iguais!". O próprio explica: na realidade, ele é um "marabout" (estudioso do Corão), porém intitula-se "vidente" por esta ser uma expressão familiar aos europeus.

Faz mal: os europeus não apreciam familiaridades. Ao contrário do ridicularizado ofício de "vidente", o de "marabout" contém as doses exactas de dissidência e "alternativa" ao "sistema" que deliciam a sensibilidade contemporânea. E quem diz um "marabout" diz um xamã, um activista ambiental, um sindicalista, um Francisco Louçã. Mas o "vidente" não compreendeu essa distinção entre a anedota e o prestígio, e nem a vidência lhe valeu
."

Alberto Gonçalves

Divulgue o seu blog!