Acabaram os brandos costumes
"Quando, há umas semanas, um sniper da polícia abateu um dos sequestradores responsáveis pelo assalto a uma agência bancária em Lisboa, não faltou quem tivesse respirado de alívio – incluindo o ministro da Administração Interna, cidadãos assustados com a vaga de violência crescente no país e até comentadores expeditos que viram nessa intervenção, ao estilo das séries televisivas americanas, um poderoso sinal dissuasor contra outras tentativas criminais.
O ministro Rui Pereira chegou, de resto, a elogiar o ‘heroísmo’ das forças da ordem, mas, que se saiba, quem teve a sua segurança física directamente ameaçada foram os sequestrados no interior do banco e não os agentes envolvidos na operação.
O ministro Rui Pereira chegou, de resto, a elogiar o ‘heroísmo’ das forças da ordem, mas, que se saiba, quem teve a sua segurança física directamente ameaçada foram os sequestrados no interior do banco e não os agentes envolvidos na operação.
Bastaram poucos dias para se perceber que o receio de ser abatido por um sniper não fora, afinal, suficiente para demover os marginais que se dedicam a assaltar agências bancárias e bombas de gasolina pelas estradas fora, ainda que seja para roubar das caixas umas escassas centenas de euros. E muito menos o terá sido para outros assaltantes, mais profissionais e sofisticados, como aqueles que fizeram explodir uma carrinha de transporte de dinheiro.
A repressão policial, mesmo quando se mostra mais implacável, não parece ser capaz de estancar a mancha que culminou, esta semana, numa sequência impressionante. «Não há dia em que não haja assaltos e crimes violentos», disse na quarta-feira o Presidente da República, apontando para a necessidade de uma «estratégia adequada», como se essas palavras mágicas servissem para resolver alguma coisa, sobretudo quando estão em jogo coisas muito diferentes, desde a delinquência dos marginais isolados ao banditismo organizado, passando pela violência doméstica também em crescendo preocupante (são já 45 mulheres que este ano foram vítimas de tentativas de homicídio por parte dos respectivos parceiros). Há episódios particularmente atrozes: ainda esta semana, uma mulher com uma criança nos braços foi baleada pelo homem com quem vivia por causa do dinheiro do rendimento mínimo.
Porosidade das fronteiras, sentimento de impunidade num país ainda impreparado para combater as novas vagas da criminalidade, conflitos sociais e étnicos entre populações suburbanas e desintegradas, efeitos incendiários do desemprego, da marginalidade e de uma cultura de irresponsabilidade civil – que uma legislação leviana, como as alterações ao Código de Processo Penal, não soube prevenir. Em Portugal passa-se insensivelmente do 8 para o 88 e do 88 para o 8 sem se medirem as consequências.
Em nome do combate aos abusos intoleráveis do recurso à prisão preventiva – que fazia do nosso país um recordista europeu na matéria – já é possível deixar à solta autores de crimes violentos, condicionando-os apenas à famosa cláusula de ‘identidade e residência’. O laxismo e a morosidade judiciais não podiam encontrar melhor pretexto para lavar as mãos das culpas próprias do que justificar-se com a permissividade do novo Código. Mas não é apenas a pequena criminalidade violenta que beneficia disso, são também o banditismo organizado e mais brutal ou os esquemas mafiosos dos delitos fiscais e da corrupção.
Ora, tudo isto acontece no momento em que a confusão de competências entre as instituições responsáveis pela prevenção e combate ao crime chegou a um ponto insustentável. Não foi decerto por coincidência que o procurador-geral da República anunciou a criação de unidades especiais de combate ao crime violento, ao mesmo tempo que era confirmado o assentimento do Presidente da República à criação do secretário-geral da Segurança Interna, um cargo de nomeação política e na dependência directa do primeiro--ministro.
Em vez de suprir a disfuncionalidade dos órgãos judiciais e policiais, essa criatura excêntrica do ‘superpolícia’ ameaça agravar ainda mais os conflitos corporativos, com o risco adicional de provocar outros curto-circuitos e, sobretudo, subverter perigosamente o princípio da separação de poderes. A pretexto da coordenação de esforços e da eficácia da acção em situações de crise e insegurança nacional, consuma-se a politização e governamentalização da esfera judicial. É uma daquelas histórias nebulosas das quais se pode dizer que não se sabe bem como começa e ainda menos como acaba.
Sintomaticamente, o Presidente da República, tão preocupado com os seus poderes em relação ao estatuto dos Açores e com a legislação que viabiliza o divórcio a pedido de um dos cônjuges, não foi sensível a uma matéria onde estão em causa os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. É uma confissão reveladora – tal como o é a do PSD, oscilando entre os enigmáticos silêncios da sua líder e um seguidismo acrítico face a Belém.
Portugal continua a ser um dos países mais seguros da Europa, confirmam-no múltiplas estatísticas que a recente onda de crimes não chega ainda para desmentir.
Mas a persistente ficção dos brandos costumes – em que tanto gostávamos de rever--nos – acabou definitivamente. Precisamos de olhar de frente as realidades do mundo da violência de que também, afinal, fazemos parte, sem exacerbamentos histéricos mas com a consciência de que estamos hoje mais expostos ao que vem de fora e aos cancros sociais que deixamos germinar cá dentro.
Não precisamos de um ‘superpolícia’, mas de um sistema judicial e policial mais integrado e politicamente mais responsabilizado, que responda perante os cidadãos e seja julgado pelos resultados da sua actividade. Mas precisamos, sobretudo, de localizar e extirpar, tanto quanto possível, as condições e ambientes que favorecem os crimes. Por mais custoso que isso seja não há volta a dar-lhe. E o tempo não anda para trás. "
Vicente Jorge Silva
1 Comments:
"E o tempo não anda para trás"... esta tirada do VJS é em tudo muito idêntica à do Cavaco quando se referiu ao 10 de Junho como o "dia da raça"... pois...
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